Legenda da foto, O Crescente Vermelho Palestino disse que vídeo foi encontrado no telefone de um paramédico que foi mortoArticle information
Author, Dan Johnson
Role, Correspondente da BBC
Reporting from Jerusalém
Há 42 minutos
Inicialmente, Israel alegou que as tropas abriram fogo porque o comboio se aproximou de forma "suspeita" na escuridão, sem faróis ou luzes intermitentes. Israel disse que o movimento dos veículos não havia sido previamente coordenado ou acordado com o exército.
Imagens de celular, filmadas por um dos paramédicos que foi morto, mostraram que os veículos estavam com as luzes acesas quando atenderam a um chamado para ajudar os feridos.
As Forças de Defesa de Israel (IDF) insistem que pelo menos seis dos médicos eram ligados ao Hamas, mas até agora não apresentaram provas. Mas admite que eles estavam desarmados quando os soldados abriram fogo.
O vídeo móvel, originalmente compartilhado pelo New York Times, mostra os veículos parando na estrada quando, sem aviso, começam os disparos pouco antes do amanhecer.
A filmagem continua por mais de cinco minutos, com o paramédico, chamado Refat Radwan, sendo ouvido fazendo suas últimas orações antes de serem ouvidas as vozes de soldados israelenses se aproximando dos veículos.
Um oficial da IDF informou os jornalistas na noite de sábado, dizendo que os soldados haviam disparado anteriormente contra um carro com três membros do Hamas.
Quando as ambulâncias responderam e se aproximaram da área, os monitores de vigilância aérea informaram aos soldados em terra que o comboio estava "avançando de forma suspeita".
Os soldados presumiram que estavam sob ameaça e abriram fogo, apesar de não haver nenhuma evidência de que qualquer membro da equipe de emergência estivesse armado.
Israel admitiu que seu relato anterior, afirmando que os veículos se aproximavam sem luzes, era impreciso, atribuindo o relato às tropas envolvidas.
O vídeo mostra que os veículos estavam claramente identificados e os paramédicos usavam uniformes refletivos de alta visibilidade.
Os soldados enterraram os corpos dos 15 trabalhadores mortos na areia para protegê-los de animais selvagens, disse o oficial, afirmando que os veículos foram movidos e enterrados no dia seguinte para liberar a estrada.
Eles só foram descobertos uma semana após o incidente porque as agências internacionais, incluindo a ONU, não conseguiram organizar uma passagem segura para a área ou localizar o local.
Quando uma equipe de socorro encontrou os corpos, também descobriu o telefone celular de Refat Radwan, que continha imagens do incidente.
O oficial militar israelense negou que qualquer um dos médicos tenha sido algemado antes de morrer e disse que eles não foram executados à queima-roupa, como alguns relatos sugeriram.
No início desta semana, um paramédico sobrevivente disse à BBC que as ambulâncias estavam com as luzes acesas e negou que seus colegas estivessem ligados a qualquer grupo militante.
As IDF prometeram um "exame minucioso" do incidente, dizendo que "entenderiam a sequência de eventos e o tratamento da situação".
O Crescente Vermelho e muitas outras organizações internacionais estão pedindo uma investigação independente.
Israel renovou seu bombardeio aéreo e sua ofensiva terrestre em Gaza em 18 de março, depois que a primeira fase de um acordo de cessar-fogo chegou ao fim e as negociações para uma segunda fase foram interrompidas.
Desde então, mais de 1.200 pessoas foram mortas em Gaza, de acordo com o ministério da saúde do território, administrado pelo Hamas.
O exército israelense lançou uma campanha para destruir o Hamas em resposta a um ataque transfronteiriço sem precedentes em 7 de outubro de 2023, no qual cerca de 1.200 pessoas foram mortas e 251 foram feitas reféns.
Mais de 50.600 pessoas foram mortas em Gaza desde então, de acordo com o Ministério da Saúde do território.
Legenda da foto, Engenheiros antigos geniais criaram um sistema que mantém Veneza em pé há mais de 1,6 mil anos, usando madeiraArticle information
Author, Anna Bressanin
Role, BBC Future
Há 2 horas
As árvores são lariços, carvalhos, amieiros, pinheiros, abetos e elmos, com altura que varia de 3,5 metros até menos de 1 metro. Elas sustentam os palácios de pedra e altos campanários há séculos, formando uma verdadeira maravilha da engenharia, que equilibra as forças da física e da natureza.
Na maioria das estruturas modernas, concreto reforçado e aço fazem o mesmo trabalho que esta floresta invertida mantém há séculos. Mas, apesar da sua força, poucas fundações atuais poderão durar tanto quanto as de Veneza.
"Estacas de concreto ou aço são projetadas hoje em dia [com garantia para durar] 50 anos", afirma o professor de geomecânica e engenharia de geossistemas Alexander Puzrin, do Instituto Federal de Tecnologia (ETH) de Zurique, na Suíça.
"É claro que elas podem durar mais tempo, mas, quando construímos casas e estruturas industriais, o padrão é de 50 anos de vida", explica o professor.
Apenas uma vez, no início da carreira, um cliente solicitou a Puzrin que oferecesse uma garantia de 500 anos, para a construção de um templo Bahá'í em Israel. "Fiquei meio que chocado, porque isso era incomum", relembra ele.
"Fiquei muito assustado e eles queriam que eu assinasse. Liguei para o meu patrão em Tel Aviv [Israel], um velho engenheiro com muita experiência, e perguntei 'o que vamos fazer? Eles querem 500 anos.'"
"Ele respondeu: '500 anos? [pausa] Assine.' Nenhum de nós vai estar aqui."
A técnica veneziana usando estacas é fascinante pela sua geometria, sua secular resistência e sua imensa escala.
Ninguém tem absoluta certeza de quantos milhões de estacas existem sob a cidade. O que se sabe é que há 14 mil postes de madeira firmemente instalados, apenas nas fundações da ponte Rialto, mais 10 mil carvalhos sob a Basílica de São Marcos, construída no ano 832.
"Nasci e cresci em Veneza", conta a professora de química ambiental e patrimônio cultural Francesca Caterina Izzo, da Universidade de Veneza.
"Quando era criança, como todos os demais, eu sabia que, no subsolo das construções de Veneza, existem as árvores de Cadore [a região montanhosa perto de Veneza]", relembra ela. "Mas eu não sabia como essas estacas foram colocadas, como elas foram contadas e derrubadas, nem que os battipali ("batedores de estacas", em tradução literal) eram uma profissão muito importante."
"Eles tinham até as suas próprias canções", ela conta. "É fascinante, do ponto de vista técnico e tecnológico."
Os battipali martelavam as estacas manualmente e cantavam uma música antiga para manter o ritmo – uma melodia assombrosa e repetitiva, com letras que elogiavam Veneza, sua glória republicana, sua fé católica e declaravam morte ao inimigo da época, os turcos.
Em tom mais leve, uma expressão veneziana em uso até hoje diz na testa da bater pai ("uma cabeça boa para bater estacas"). É uma forma descontraída de dizer que alguém é apático ou tem raciocínio lento.
Crédito, Emmanuel Lafont/ BBC
Legenda da foto, As pessoas que fixavam as estacas eram conhecidas como 'battipali', os 'batedores de estacas'. Eles cantavam uma canção para manter o ritmo enquanto trabalhavam
As estacas eram imobilizadas o mais fundo possível, até que não pudessem mais ser comprimidas, começando na extremidade externa da estrutura e se movendo em direção ao centro das fundações.
Normalmente, eram nove estacas por metro quadrado em formato espiral. As pontas eram serradas para obter uma superfície regular, que ficaria abaixo do nível do mar.
Por cima, foram colocadas estruturas de madeira transversais – zatteroni (placas) ou madieri (feixes).
No caso dos campanários, estes feixes ou placas tinham espessura de até 50 cm. Para outras construções, as dimensões eram de 20 cm ou até menos.
Carvalho era a madeira mais resistente, mas também a mais preciosa. O carvalho, posteriormente, só seria usado para construir navios, pois era valioso demais para ser enterrado na lama.
E, sobre a estrutura de madeira, os trabalhadores colocariam as pedras da construção.
A República de Veneza logo começou a proteger suas florestas, para fornecer madeira suficiente para construir a cidade e os navios.
"Veneza inventou a silvicultura", explica Nicola Macchioni, diretor de pesquisa do Instituto de Bioeconomia do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália. Silvicultura é a prática de cultivar árvores.
Para Macchioni, estas práticas de conservação já deviam ser empregadas anos antes de serem escritas.
"Isso explica por que o Vale de Fiemme ainda é coberto por uma exuberante floresta de pinheiros hoje em dia." E, enquanto isso, países como a Inglaterra já enfrentavam escassez de madeira em meados do século 16, explica ele.
Crédito, Emmanuel Lafont/ BBC
Legenda da foto, As estacas de madeira no subsolo de Veneza vêm se degradando lentamente. Bactérias anaeróbicas atacam as paredes celulares das fibras de madeira
Veneza não é a única cidade que emprega estacas de madeira nas suas fundações. Mas existem diferenças fundamentais que fazem da cidade italiana um caso único.
Amsterdã, na Holanda, é outra cidade construída parcialmente sobre estacas de madeira. Ali e em muitas outras cidades do norte da Europa, elas descem pelo subsolo até encontrarem o leito rochoso, funcionando como longas colunas ou as pernas de uma mesa.
"O que é ótimo, se a rocha estiver próxima da superfície", explica o professor de arquitetura Thomas Leslie, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Mas, em muitas regiões, o leito rochoso fica muito além do alcance das estacas.
Leslie mora nas margens do lago Michigan, nos Estados Unidos. Ali, o leito rochoso pode ficar a até 30 metros abaixo da superfície.
"Encontrar árvores desta altura é difícil, não? Existem histórias de Chicago nos anos 1880 em que eles tentaram colocar um tronco de árvore em cima do outro, o que, como você pode imaginar, acabou não funcionando. Por fim, eles perceberam que você pode confiar na fricção do solo."
O princípio é baseado na ideia de reforço do solo, espetando o máximo de estacas possível. Este processo cria fricção substancial entre as estacas e o solo.
"O inteligente sobre isso é que você meio que usa a física", explica Leslie. "A beleza é que você está usando a natureza fluida do solo para fornecer resistência para sustentar as construções."
O nome técnico é pressão hidrostática. Ela significa essencialmente que o solo "aperta" as estacas, se muitas delas forem inseridas densamente em um ponto, segundo ele.
De fato, é assim que funcionam as estacas venezianas. Elas são curtas demais para atingir o leito rochoso e, em vez disso, mantêm os edifícios em pé graças à fricção. Mas a história desta forma de construção remonta a muito tempo atrás.
A técnica foi mencionada pelo engenheiro e arquiteto romano Vitrúvio, do século 1º a.C. Os romanos teriam usado estacas submersas para construir pontes, que também ficam perto da água.
A China também construiu portais de água usando estacas de fricção. E os astecas usaram estacas em Tenochtitlán (hoje Cidade do México), antes da chegada dos espanhóis – que destruíram a cidade velha e construíram no mesmo lugar sua catedral católica, destaca Puzrin.
"Os astecas sabiam construir no seu ambiente muito melhor que os espanhóis, que vieram depois", explica ele. "Agora, eles têm enormes problemas com sua catedral metropolitana", pois seu piso está afundando de forma irregular.
Puzrin leciona em um curso de graduação da ETH que investiga falhas geotécnicas famosas.
"E esta é uma dessas falhas", afirma ele. "A catedral e a Cidade do México como um todo são um museu a céu aberto de tudo o que pode dar errado com as suas fundações."
Crédito, Emmanuel Lafont/ BBC
Legenda da foto, A madeira, o solo e a água se combinam para oferecer notável resistência às fundações de Veneza
Depois de mais de um milênio e meio na água, as fundações de Veneza se mostraram incrivelmente resistentes. Mas não são imunes à degradação.
Dez anos atrás, uma equipe das universidades italianas de Pádua e Veneza (incluindo o departamento florestal e de engenharia até o de patrimônio cultural) investigaram as condições das fundações da cidade, a começar do campanário da Basílica dei Frari, construído em 1440 sobre estacas de amieiro.
O campanário afunda 1 mm por ano desde a sua construção, atingindo um total de 60 cm.
Em comparação com as igrejas e edifícios, os campanários têm mais peso distribuído sobre uma superfície menor. Por isso, eles afundam mais e com maior rapidez, "como um salto agulha", segundo Macchioni. Ele fez parte da equipe que investigou as fundações da cidade.
Caterina Francesca Izzo trabalhava no campo, perfurando, coletando e analisando amostras de madeira do subsolo das igrejas, campanários e das laterais dos canais, que, na época, estavam sendo esvaziados e limpos.
Ela declarou que eles precisavam trabalhar com cuidado no fundo dos canais secos, para evitar o esgoto que jorrava esporadicamente dos canos laterais.
A equipe descobriu que, em todas as estruturas investigadas, a má notícia era que a madeira estava danificada, mas o sistema formado pela água, madeira e lama mantinha tudo aquilo unido, o que é bom.
Os pesquisadores desmentiram a crença comum de que a madeira no subsolo da cidade não se deteriora por ser mantida sem oxigênio, em condições anaeróbicas.
Além disso, a água preenche as células esvaziadas pelas bactérias, o que permite que as estacas de madeira mantenham seu formato. Por isso, mesmo que as estacas de madeira sejam danificadas, o sistema completo de madeira, água e lama é mantido coeso sob intensa pressão, mantendo sua resistência por séculos.
"Existe algo para se preocupar?", questiona Izzo. "Sim e não, mas devemos ainda verificar a continuidade deste tipo de pesquisa."
Desde o trabalho realizado 10 anos atrás, eles não coletaram novas amostras, principalmente devido à logística envolvida.
Macchioni ressalta que não se sabe por quantos séculos as fundações ainda irão durar. "Mas será enquanto o ambiente permanecer inalterado."
"O sistema de fundações funciona porque é feito de madeira, solo e água." O solo cria um ambiente livre de oxigênio, a água também contribui para isso e mantém o formato das células, enquanto a madeira fornece fricção. Sem um destes três elementos, o sistema desaba.
Nos séculos 19 e 20, a madeira foi totalmente substituída por cimento na construção de fundações. Mas, nos últimos anos, uma nova tendência de construção com madeira vem despertando mais interesse, incluindo o aumento dos arranha-céus de madeira.
"É meio que o material da moda, agora, por razões muito boas", comenta Leslie. Afinal, a madeira é um sifão de carbono, biodegradável e, graças à sua flexibilidade, é considerada um dos materiais mais resistentes a terremotos.
"É claro que não podemos construir cidades inteiras de madeira, pois existem muitas no planeta", destaca Macchioni. Mas é inegável que, como os construtores antigos não contavam com motores e materiais artificiais, eles simplesmente precisaram ser mais criativos.
Veneza não é a única cidade com fundações de madeira, mas é "a única [em que a técnica de fricção foi empregada] em massa, continua sobrevivendo hoje em dia e é imensamente bonita", ressalta Puzrin.
"Havia pessoas ali que não estudaram a mecânica do solo e a engenharia geotécnica e, ainda assim, geraram algo que durou tanto tempo e só conseguimos produzir em sonhos. Eles eram engenheiros incríveis e intuitivos, que fizeram exatamente a coisa certa, aproveitando todas estas condições especiais."
As ilustrações desta reportagem têm apenas propósitos artísticos. Elas não são representações reais das fundações de estacas de madeira no subsolo de Veneza, que são firmemente compactadas e não têm galhos.
Legenda da foto, Nelly Naisula Sironka diz que não tem qualquer problema com a sua decisão de contrariar as normas sociaisArticle information
Author, Danai Nesta Kupemba
Role, BBC News
Há 4 horas
Desde que Nelly Naisula Sironka consegue se lembrar, ela nunca quis ter filhos — e com uma decisão irreversível, a queniana de 28 anos garantiu que nunca vai engravidar.
Em outubro do ano passado, ela deu o passo definitivo ao se submeter a um procedimento de esterilização conhecido como laqueadura — fechando permanentemente as portas para a maternidade.
"Foi libertador", diz à BBC a especialista em desenvolvimento organizacional, acrescentando que o procedimento garantiu que seu futuro é agora inteiramente seu.
A operação previne a gravidez ao bloquear as trompas de falópio da mulher — e, às vezes, é chamada de "ligadura de trompas".
Entre 2020 e 2023, cerca de 16 mil mulheres no Quênia foram submetidas à laqueadura, de acordo com o Ministério da Saúde do país africano.
Não se sabe ao certo quantas destas mulheres já não tinham filhos.
Mas a ginecologista Nelly Bosire afirma que o perfil das mulheres que procuram a esterilização no Quênia está mudando.
"Tradicionalmente, as candidatas mais comuns à laqueadura eram mulheres que já tinham vários filhos", diz a médica, baseada em Nairóbi, à BBC.
"Mas, agora, estamos vendo mais mulheres com menos filhos optando pelo procedimento."
A esterilização só é recomendada para mulheres que têm certeza de que não querem ter filhos biológicos no futuro, uma vez que a reversão é difícil.
"Os médicos normalmente não incentivam a laqueadura porque a taxa de sucesso de uma reversão é muito baixa", explica Bosire.
Apesar de vir de uma família numerosa, Sironka relata que nunca se sentiu pressionada a começar sua própria família, embora as normas sociais no Quênia depositem uma expectativa de que as mulheres tenham filhos.
Ela atribui sua postura ao pai, já que ele a incentivou a se concentrar nos estudos, e compartilhou com ela o gosto pela leitura.
Livros de autoras feministas americanas como Toni Morrison, Angela Davis e Bell Hooks foram uma revelação para ela.
"Interagi com histórias de vida de mulheres que não tinham filhos", conta Sironka, que agora é chefe de operações da Feminists in Kenya, uma organização que trabalha para acabar com a violência de gênero.
"Isso me fez perceber que uma vida como essa era possível."
Ela pensava em se submeter à laqueadura há anos, mas decidiu seguir em frente depois de economizar o dinheiro para o procedimento — e encontrar um emprego estável que permitiria a ela tirar uma licença..
A operação custou 30 mil xelins quenianos (cerca de R$ 1.330) em um hospital particular.
Isso a fez temer que o direito de uma mulher de controlar seu próprio corpo pudesse ser prejudicado em outros lugares — e que ela deveria fazer o procedimento enquanto ainda era possível.
"Na África e na América, houve um aumento do fascismo e dos regimes autoritários, um exemplo perfeito disso é o Quênia", ela argumenta.
Quando contou à família, não foi uma surpresa para eles, já que ela sempre manifestou seu desejo de não ter filhos.
E quanto a namoros e relacionamentos?
"Ainda estou pensando sobre isso", ela diz com um encolher de ombros.
Sironka não está sozinha na decisão de ter uma vida sem filhos, desafiando as expectativas tradicionais da feminilidade.
Crédito, Muthoni Gitau
Legenda da foto, A YouTuber queniana Muthoni Gitau contou a seus milhares de seguidores sobre a decisão que tomou de fazer uma laqueadura
Nas redes sociais, há pessoas que falam abertamente sobre sua decisão de não ter filhos e de se submeter à esterilização.
Entre elas, está Muthoni Gitau, uma designer de interiores e apresentadora de podcasts.
Ela compartilhou sua jornada para fazer a laqueadura em um vídeo de 30 minutos no YouTube em março do ano passado, explicando sua decisão de se submeter ao procedimento.
"Acho que a primeira vez que articulei... [que] eu não queria ter filhos, eu tinha cerca de 10 anos", diz ela à BBC.
A mãe dela estava grávida na época, e uma pergunta aleatória sobre seu futuro surgiu na conversa.
"Eu via um possível parceiro. Via viagens. Só nunca via filhos", acrescenta.
Assim como Sironka, a decisão de Gitau foi motivada por uma forte convicção de viver a vida em seus próprios termos.
Depois de tentar tomar pílula anticoncepcional, que, segundo ela, causava náusea, ela buscou uma solução mais permanente.
Quando procurou um médico pela primeira vez para fazer a laqueadura, aos 23 anos, encontrou resistência.
Ela recebeu o que parecia ser um sermão sobre como os filhos eram uma bênção de Deus.
"Ele me perguntou: 'E se eu conhecesse alguém que queira ter filhos?'", relembra.
Segundo ela, o médico parecia ter mais consideração por uma "pessoa imaginária" do que pela paciente em carne e osso sentada na frente dele.
Gitau conta que a recusa foi "de partir o coração". Passou-se mais uma década até que seu desejo fosse finalmente atendido.
Bosire ressalta que um desafio significativo no Quênia é fazer com que os médicos mudem sua mentalidade, e realmente valorizem o direito do paciente de tomar decisões sobre sua saúde.
"Isso está relacionado à nossa cultura, na qual as pessoas acreditam que não é normal que as mulheres queiram fazer uma laqueadura", avalia.
Outro ginecologista queniano, Kireki Omanwa, admite que a questão é motivo de debate entre colegas e no meio médico.
"A questão continua sendo inconclusiva", diz ele à BBC.
Mas Gitau, hoje com 34 anos, não se deixou intimidar e, no ano passado, procurou outro médico — desta vez, em uma organização não governamental que oferece serviços de planejamento familiar.
Ela foi armada com uma lista de argumentos para respaldar sua decisão, e ficou aliviada ao descobrir que não houve resistência.
"O médico foi muito gentil", ela afirma.
Atualmente solteira, ela vive feliz com a escolha, que sente que concede a ela controle sobre sua própria vida.
Ela também está feliz com a repercussão do seu vídeo — e aliviada por não ter havido nenhuma reação negativa grande.
Ela conta que a maioria das pessoas online aplaudiram sua decisão, o que a deixou mais confiante.
"As mulheres podem contribuir para o mundo de muitas outras maneiras", diz ela.
"Não precisa ser por meio da criação de um ser humano completo. Sou grata por viver em uma geração em que a escolha existe."
Legenda da foto, A presidente mexicana atingiu inéditos 85% de aprovação, segundo as pesquisas.Article information
Author, Daniel Pardo
Role, Correspondente da BBC News Mundo no México
6 abril 2025, 05:53 -03
O popular presidente de El Salvador, Nayib Bukele, perguntou na semana passada à ferramenta de Inteligência Artificial Grok, da plataforma X (antigo Twitter), quem é o presidente mais popular do mundo.
E, para surpresa do mandatário salvadorenho, a resposta da IA foi "Sheinbaum".
Como costuma acontecer nas redes sociais, a pergunta logo se tornou uma disputa de versões na seção de comentários. As pessoas passaram a discutir sobre as diferentes formas de avaliar a popularidade de um presidente – o que, é claro, não é uma ciência exata.
Mas, deixando o episódio de Bukele à parte, o índice de aprovação da presidente mexicana Claudia Sheinbaum – calculado em cerca de 85% – é admirável.
"É um número difícil de explicar", afirma o renomado pesquisador mexicano Francisco Abundis, "porque ela, partindo de um número muito favorável, não parou de subir."
"Isso é incomum, não só nas nossas medições [da empresa de pesquisas Parametría], mas em todas as amostras sérias dos colegas", destaca ele.
Todas as pesquisas, segundo Abundis, relatam que pouco mais de oito em cada 10 mexicanos aprovam o desempenho de Sheinbaum, que completou seis meses na presidência do país na última terça-feira (1/4).
São números inéditos no México nos últimos 30 anos. E também um caso raro na América Latina e no mundo, ainda mais nos tempos atuais de polarização e desconfiança frente às instituições.
O que explica esta lua de mel entre a primeira mulher presidente da história do México e seu eleitorado? E o que poderá vir a interrompê-la?
Crédito, Getty Images
Legenda da foto, A presidente Claudia Sheinbaum é a mais popular dos últimos 30 anos no México.
Sucessora mais popular do que seu líder
Sheinbaum sucedeu o ex-presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO), em um movimento progressista, popular e nacionalista, que promete realizar profundas mudanças no México.
Mesmo com o aumento dos homicídios e desaparecimentos, além da continuidade da corrupção, AMLO conseguiu uma representação política inédita no México nos últimos 30 anos. Isso se deveu ao seu carisma, sua figura de pai defensor do povo e a uma longa lista de políticas que, entre outros resultados, reduziram a pobreza em quase 10 pontos.
Além disso, a oposição mexicana não conseguiu se realinhar frente ao fenômeno López Obrador. Pelo contrário, ela manteve seu discurso sobre as formas e garantias democráticas, que estariam supostamente ameaçadas.
Mas, para a maioria dos mexicanos, este parecia um ponto secundário, frente aos aumentos do salário mínimo e à geração de empregos com as construções de obras públicas.
Por tudo isso, Sheinbaum já chegou ao poder com imensa aprovação.
Com 62 anos de idade, a mandatária tem perfil tecnocrático. Ela alia sua experiência como cientista, professora e feminista com uma curta carreira na política, que a levou à prefeitura da Cidade do México durante a presidência de AMLO, entre 2018 e 2024.
Sheinbaum venceu as eleições do ano passado com mais de 30 pontos percentuais de diferença sobre sua adversária. E seu partido Morena conseguiu maioria absoluta e histórica no Congresso mexicano.
"Ela ganhou com vantagem muito alta", destaca Abundis. "Isso lhe deu uma legitimidade que aumentou sua aprovação, com o chamado fenômeno rally around the winner" ("todos fechados com o vencedor", em inglês).
Sheinbaum assumiu a presidência no dia 1º de outubro do ano passado, com 73% de apoio – dois pontos percentuais acima de AMLO no final do seu mandato. E, desde então, a aprovação da presidente subiu mais 10 pontos.
Crédito, Getty Images
Legenda da foto, O ex-presidente AMLO se mantém em silêncio desde que terminou seu mandato, mas sua participação no tabuleiro político permanece inevitavelmente importante.
O fator Trump
Duas variáveis explicam este aumento, segundo o pesquisador.
Por um lado, Sheinbaum demonstrou que tem uma agenda própria que a diferencia de AMLO: um método rigoroso e equânime que, ao lado do seu temperamento ponderado e calculista, transmite a noção de alguém que tem responsabilidade e mantém tudo sob controle.
"Ela já era conhecida, mas as pessoas [agora] estão começando a conhecê-la a fundo e observando que ela tem um caráter independente e responsável", explica Abundis.
Paralelamente, nos últimos seis meses, os Estados Unidos – o sócio e vizinho mais importante do México – elegeram para a presidência alguém com um perfil diametralmente oposto ao de Sheinbaum: o imprevisível, agressivo e antifeminista Donald Trump.
Para Abundis, "isso gerou outro fenômeno ocorrido em outros países enfrentados por Trump: todos fechados em torno da bandeira" (rally around the flag, no jargão político em inglês).
Ou seja, frente às ameaças de Trump, mais nacionalismo e apoio à presidente.
Em termos de segurança, por exemplo, a presidente mexicana atendeu ao pedido de Trump de redobrar a luta contra o tráfico de fentanil, com uma política de mão forte contra o crime. E os números oficiais indicam que suas medidas reduziram os homicídios em até 20%.
Crédito, Getty Images
Legenda da foto, Os ataques de Donald Trump ao país vizinho fizeram a população mexicana se unir em torno da sua presidente.
O que vem por aí
A lua de mel na política nunca é eterna. E Claudia Sheinbaum abriu frentes de todos os tipos – a começar por Trump, que irá insistir com as tarifas sobre as importações americanas provenientes do México.
E, se os Estados Unidos realmente entrarem em recessão, o mais provável é que o mesmo ocorra com o México, que vem em curva decrescente.
Em seguida, vem o tema da insegurança. No México, ela continua sendo crônica e voltou recentemente às manchetes, com a descoberta de um centro de recrutamento do Cartel de Jalisco na cidade de Teuchitlán.
A notícia trouxe a recordação de um número doloroso. No México, existem 120 mil pessoas desaparecidas e o Estado não consegue fazer muito para encontrá-las.
Acrescente-se ainda outro cenário difícil de ignorar: as divisões, ataques e escândalos dentro do movimento governista do partido Morena. Nos últimos dias, eles voltaram a ser notícia com o caso do ex-governador e ex-jogador de futebol Cuauhtémoc Blanco. Ele foi acusado de assédio sexual e corrupção, mas conta com o apoio do partido.
Sheinbaum é a chefe do partido Morena. Mas ela tem ao seu lado grandes caciques do poder, como o exército mexicano. E eles parecem ter agenda própria e, às vezes, contrária à da presidente.
Surge aqui a pergunta de sempre: qual a importância da sombra de AMLO?
Um dos seus filhos é secretário do partido. E o ex-presidente pode ser um fator implícito para desestabilizar a popularidade ou o caráter independente de Sheinbaum, até o último dia do seu mandato.
"Acredito que a economia, se os programas sociais forem afetados, e AMLO, se ela continuar defendendo o ex-presidente sem se distanciar dele, são os dois fatores que podem causar mais prejuízo a esse apoio", indica Abundis. Mas ele acredita que a presidente tem margem para isso.
"Sua figura parece estar acima do próprio partido, da sua própria política pública, pois há um efeito além do resultado do bom governo, que tem a ver com ela e sua marca. Acredito que, se ela conseguir manter isso, irá preservar sua aprovação."
Ou seja, Claudia Sheinbaum teria margem suficiente para ainda se manter entre os presidentes mais populares do mundo.
Legenda da foto, Milhares se juntaram a um protesto na capital WashingtonArticle information
Author, Robin Levinson King em Boston, Jenna Moon em Washington e Bernd Debusmann Jr na Florida
Role, BBC News
Há 32 minutos
Milhares de manifestantes se reuniram em cidades dos EUA neste sábado (5/4) para protestar contra Donald Trump no maior ato de oposição desde que o presidente assumiu o cargo em janeiro último.
Os organizadores do protesto "Tire as Mãos" planejaram manifestações em 1.200 localidades em todos os 50 Estados americanos. Milhares de pessoas foram a atos em Boston, Chicago, Los Angeles, Nova York e na capital Washington.
Os manifestantes criticavam questões sociais e econômicas da agenda do governo Trump.
Crédito, Getty Images
Legenda da foto, Manifestante em Londres segura uma escova de vaso sanitário com a imagem de Trump
Crédito, AFP via Getty Images
Legenda da foto, Manifestantes também foram às ruas de Paris protestar contra Trump
Em Boston, alguns manifestantes disseram que foram motivados por operações da agência de imigração contra estudantes estrangeiros que protestaram contras a política americana em Gaza.
A estudante de direito Katie Smith disse à BBC News que foi ao ato depois que estudante turca Rumeysa Ozturk foi presa perto da Universidade Tufts, no Estado de Massachusetts, por agentes que escondiam o rosto com máscaras.
"Você pode tomar uma postura hoje ou ser levado [pelas autoridades] depois", disse ela: "Eu geralmente não sou muito de protesto".
Em Londres, os manifestantes seguravam cartazes com frases como "parem de machucar as pessoas" e "ele é um idiota".
Nos atos eram ouvidas frases como "tire as mãos do Canadá", "tire as mãos da Groenlândia" e "tire as mãos da Ucrânia", em referência à política externa dos EUA.
Trump tem expressado repetidamente interesse em anexar o Canadá e a Groenlândia. Ele também entrou em uma disputa pública com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e tem enfrentado dificuldades para chegar a um acordo de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Antes ele havia dito que resolveria o conflito "em 24 horas".
Na capital Washington, milhares de manifestantes se reuniram para acompanhar discursos de políticos democratas. Muitos citaram Elon Musk. O deputado da Flórida Maxwell Frost denunciou a "tomada de nosso governo por bilionários".
"Quando você rouba do povo, pode esperar que o povo acorde. Nas urnas e nas ruas", disse.
Os protestos ocorrem após uma semana difícil para o presidente e seus aliados.
Os republicanos venceram uma eleição especial para o Congresso da Flórida, mas com margem menor do que a esperada. Os eleitores do Estado do Wisconsin elegeram uma juíza democrata para a Suprema Corte estadual, rejeitando por quase 10 pontos percentuais um candidato republicano apoiado por Musk.
Crédito, Reuters
Legenda da foto, Manifestantes em Nova York com cartazes que diziam 'tire as mãos'
Crédito, Getty Images
Legenda da foto, Um protesto foi realizado em West Palm Beach, Flórida, perto de onde Trump estava jogando golfe
Pesquisas mostram uma pequena queda dos índices de aprovação de Trump.
Uma pesquisa Reuters/Ipsos divulgada no início desta semana aponta uma queda no índice de aprovação para 43%, ponto mais baixo desde que Trump iniciou seu segundo mandato em janeiro. Quando ele tomou posse em 20 de janeiro, esse índice era de 47%.
A mesma pesquisa mostra que 37% dos americanos aprovam sua gestão da economia, enquanto 30% aprovam a estratégia trumpista para lidar com desafios ligados ao custo de vida nos EUA.
Outra pesquisa recente, da Harvard Caps/Harris, descobriu que 49% dos eleitores registrados aprovam o desempenho de Trump no cargo, abaixo dos 52% do mês anterior.
A mesma pesquisa, no entanto, descobriu que 54% dos eleitores acreditam que ele está fazendo um trabalho melhor do que Joe Biden fez como presidente.
Uma manifestante em Washington disse que participava do ato porque "estamos perdendo nossos direitos democráticos".
"Estou muito preocupada com os cortes que eles estão fazendo no governo federal", disse ela, acrescentando que também está preocupada com os benefícios ligados à aposentadoria e educação.
Perguntada se ela achava que Trump estava recebendo a mensagem dos manifestantes, ela disse: "Bem, vamos ver. [Trump] tem jogado golfe quase todos os dias."
Trump não realizou eventos públicos no sábado e passou o dia jogando golfe em um resort de sua propriedade na Flórida. A programação seguiria no domingo.
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Legenda da foto, Em Washington, manifestantes satirizaram a decisão de Trump de taxar uma ilha australiana habitada por pinguins
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Legenda da foto, Manifestantes também se reuniram em Houston, no Texas
A Casa Branca divulgou um comunicado defendendo as posições de Trump, dizendo que ele continuará a proteger programas como o Medicare e que os democratas é que são uma ameaça.
"A posição do presidente Trump é clara: ele sempre protegerá a previdência social, os [programas] Medicare e o Medicaid para os beneficiários elegíveis. Enquanto isso, a postura dos democratas é dar esses benefícios a estrangeiros ilegais, o que levará à falência esses programas e prejudicará os idosos americanos."
Um dos principais assessores de imigração de Trump, Tom Homan, disse à Fox News no sábado que manifestantes realizaram um protesto em frente à sua casa em Nova York, mas que ele estava em Washington na hora.
"Eles podem protestar na frente de uma casa vazia o quanto quiserem", disse Homan. "Protestos e manifestações não significam nada".
"Então, vão em frente e exerçam seus direitos da Primeira Emenda [liberdade de expressão]. Isso não vai mudar os fatos."
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Legenda da foto, Em St. Paul, no Estado de Minnesota, manifestantes protestaram contra Trump e hastearam uma bandeira americana de cabeça para baixo
Legenda da foto, Com os avanços da neurociência e da psicologia cognitiva, mistérios de como a memória funciona foram desvendadosArticle information
Author, Margarita Rodríguez
Role, BBC News Mundo
Há 4 horas
"Quero que você se lembre do número 584. Já volto", disse a neuropsicóloga Brenda Milner a Henry, um paciente que sofria de amnésia grave.
Ela o deixou sozinho na sala do consultório. Mas primeiro se certificou de que não haveria nenhum tipo de distração.
Milner saiu para tomar um café e, depois de 20 minutos, voltou.
-Sim, muito bem. Como você fez?
-Bem, 5,8 e 4 somam 17. Dividido por 2, você tem 8 e 9. Lembre-se de 8. Divida 9, você tem 5 e 4. 584. Simples
-E você se lembra do meu nome?
-Desculpa, o problema é minha memória
Embora Milner e Henry se conhecessem há mais de 30 anos, ele nunca se lembrou do nome dela. Cada vez que eles se viam, ela tinha que se apresentar.
Na verdade, ele não se lembrava de nada do que estava vivenciando.
Milner foi a primeira psicóloga que se dedicou a estudar seu caso e, junto a suas pesquisas anteriores e posteriores com outros pacientes, surgiu o conhecimento que mudou nossa compreensão do cérebro e da memória.
"Houve uma guinada quase copernicana. Passamos da compreensão do cérebro de uma forma para outra completamente diferente por causa de estudos como o da professora Milner", diz Gabriel Ruiz, professor de história da psicologia na Universidade de Sevilha, na Espanha.
Uma cirurgia no cérebro
A história do número 584 foi contada por Milner em uma entrevista publicada pela Associação para a Ciência Psicológica em 2013.
A neurocientista conheceu Henry em 1955, quando ele tinha 29 anos.
Crédito, Montreal Neurological Institute-Hospital
Legenda da foto, Milner, que lecionou na Universidade McGill, no Canadá, é considerada por muitos especialistas como fundadora da neuropsicologia clínica e da neurociência cognitiva
Foi somente após sua morte, aos 82 anos, que seu nome ficou conhecido publicamente: Henry Molaison. Antes disso, ele havia aparecido em estudos e publicações especializadas como o paciente H.M.
Henry sofria de ataques de epilepsia muito graves que o impediam de levar uma vida normal. Por isso, ele foi submetido a uma operação para remover estruturas do cérebro.
O cirurgião havia determinado que essas estruturas estavam na origem das crises de epilepsia.
O problema da epilepsia foi resolvido, mas surgiu outro: após a operação, Henry não conseguia se lembrar de nada do que estava acontecendo em sua vida. Ele sofria de amnésia anterógrada.
A cirurgia havia causado danos que o impediam de criar novas memórias. No entanto, ele manteve muitas das memórias que havia formado antes da operação, como as de sua infância.
E o número?
Mas se Henry não conseguia consolidar novas memórias, como é que conseguiu se lembrar do número 584?
O segredo era que ele "conseguia reter informações muito bem por meio da prática verbal constante", explicou Milner na entrevista de 2013.
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Legenda da foto, A história de Henry com o número 584 foi contada por Milner em 2013
Soma-se a isso um elemento fundamental, diz à BBC News Mundo, serviço de notícias da BBC em espanhol, Robert Zatorre, professor do Instituto Neurológico de Montreal (The Neuro), no Canadá.
"Se ele não fosse interrompido e começasse a pensar constantemente naquele número, a fazer uma prática mental, ele poderia, depois de um tempo, quando ela perguntasse, dizer o número."
"Mas se ele se distraísse com alguma outra coisa, por menor que fosse, se perguntassem a ele, por exemplo, qual é o nome do seu pai? Aquela pequena interrupção fazia o paciente esquecer o número, mas não só isso, ele esqueceria que havia recebido um número que teria que lembrar."
"Ele diria: 'Que número? Não sei do que você está falando'."
Além do óbvio
Zatorre, que dirige o Laboratório de Neurociência Cognitiva Auditiva do The Neuro, foi um dos alunos de Milner neste centro de pesquisa. Na verdade, eles ainda mantêm contato.
"Brenda era muito perspicaz, e sempre nos dizia: 'Quando você faz um teste (psicológico) em um paciente, faça o cálculo e verifique sua pontuação, mas ao mesmo tempo observe-o, veja o que está fazendo e intua o que está pensando'."
"Ela tentava entender como era a mente daquele indivíduo."
Crédito, Montreal Neurological Institute-Hospital
Legenda da foto, Milner, hoje com 106 anos, nasceu na Inglaterra, e passou grande parte de sua carreira no Canadá, onde mora
"E então ela percebeu que esses pacientes, embora aparentemente não conseguissem responder nenhuma pergunta, porque não conseguiam se lembrar de nada, continuavam realizando atividades comuns, continuavam escrevendo, e isso a deixava muito curiosa: 'Como é que essa pessoa não se lembra do que fez há 15 minutos ou se almoçou, mas se lembra de outras coisas?'"
Milner começou a estudar as funções motoras, o aprendizado de atividades complexas — e "com isso descobriu o que chamamos de dissociações, ou seja, um paciente pode não se lembrar de nada que foi dito a ele, mas se lembra como realizar determinada atividade".
E isso a levou ao que é conhecido como sistemas múltiplos de memória.
Entre memórias
De acordo com Ruiz, a ideia de sistemas múltiplos de memória se refere ao fato de que existem diferentes tipos de memória que dependem de diferentes estruturas no cérebro.
E eles podem ser estudados, como fez Milner, fazendo com que uma pessoa execute diferentes tipos de tarefas.
Na verdade, experiências como a de Henry com o número 584 levaram Milner a descrever um tipo de memória: a memória de trabalho.
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Legenda da foto, Milner estudou áreas do cérebro como o lobo temporal, que aparece em amarelo nesta imagem. O lobo frontal pode ser visto em rosa, o lobo parietal em azul, e o lobo occipital em laranja
"É a memória que nos permite guardar informações por alguns segundos. É como um depósito temporário", diz o professor à BBC News Mundo.
"Se eu te disser um ano: '1960', e pedir que você me diga, você vai fazer isso, e será capaz de repeti-lo para mim depois de 10 segundos. Mas se você não se esforçar para repetir e elaborar essa informação, ela vai desaparecer, porque a única coisa para a qual você precisava dela era para responder a uma pergunta."
"Este sistema é fundamental para manter a conversa que estamos tendo: você me pergunta, eu te respondo, você volta a me perguntar."
"Isso é regulado por estruturas cerebrais diferentes das da memória autobiográfica, as lembranças que temos da nossa vida."
"Ou das (estruturas) da memória processual, que nos permite aprender habilidades".
E foi justamente o estudo da memória processual de Henry que levou Milner a um dos momentos mais importantes de sua carreira, e que também acabou sendo um dos mais importantes da neurociência.
"Em um lampejo de inspiração, Brenda decidiu tentar outros tipos de tarefas de memória com HM, e descobriu, para sua grande surpresa e alegria, que ele era capaz de aprender certas tarefas especializadas, como desenhar olhando para um espelho, embora não tivesse nenhuma memória explícita de tê-las aprendido", escreveu Zatorre no artigo "Brenda Milner e as origens da neurociência cognitiva".
O teste do espelho
Milner contava que, embora tenha tentado ensinar coisas a Henry que ele não conseguiu aprender, havia uma exceção: o teste de desenho no espelho.
De acordo com a Associação Americana de Psicologia, este teste visa a habilidade motora "que mede a capacidade de alterar padrões aprendidos de coordenação motora".
No teste, Henry via o reflexo em um espelho do desenho de uma estrela de cinco pontas com borda dupla.
Legenda da foto, O teste de desenho no espelho é feito com uma estrela semelhante a esta, em que a pessoa deve desenhar uma linha no espaço estreito entre as duas bordas da estrela
Henry não conseguia ver diretamente o papel com a estrela desenhada, pois estava deliberadamente coberto —, ele só conseguia ver seu reflexo no espelho.
Deram a ele um lápis, e pediram que desenhasse uma linha dentro da margem dupla da estrela no papel.
"O que tornava esta tarefa difícil", dizia Milner, é que Henry só podia ver o espelho refletindo o que ele estava fazendo com o lápis sobre a folha.
"E o que acontece com todos nós é que ficamos confusos porque o espelho nos dá pistas enganosas."
Nosso cérebro não supõe que está vendo a imagem invertida — e, por isso, temos tanta dificuldade de traçar a linha entre as bordas da estrela, e cometemos erros.
"Mas se você praticar, pode melhorar, e aprender a fazer isso".
Crédito, Daniel Arce/BBC
Legenda da foto, No teste de desenho no espelho, a pessoa não vê diretamente o que está fazendo no papel, apenas vê o que está fazendo refletido em um espelho
"Após três dias de tentativa e erro", Milner observou "uma bela curva de aprendizado" no trabalho de Henry.
Ela contava que, no terceiro dia, depois de fazer um desses exercícios, que ficou "perfeito", aquele "homem alto" se levantou e olhou para baixo.
"Que estranho, no começo pensei que seria difícil, mas parece que me saí muito bem", disse Henry.
É que ele não se lembrava de toda a prática, de todas as tentativas anteriores que havia feito. Não se lembrava de ter aprendido esta habilidade.
"Ver que HM havia aprendido a tarefa perfeitamente, mas sem qualquer consciência de que já a havia feito antes, foi uma dissociação surpreendente. Se você quer saber qual foi o momento mais emocionante da minha vida, foi este", contou Milner, de acordo com um artigo da The Neuro.
Assim, "o conceito de sistemas múltiplos de memória foi inovador na época, e estimulou uma enorme quantidade de pesquisas internacionais".
Como ela conseguiu isso?
O trabalho de Milner com Henry a levou a descobrir algo que mudou completamente nossa ideia sobre a memória, diz Ruiz.
"Ela aborda uma ideia que rompe com a antiga concepção unitária do funcionamento do cérebro, da memória, que acreditava que tudo estava distribuído por toda parte, e começa a apontar para uma ideia de que certas funções estão localizadas em determinados sistemas que, embora trabalhem de forma coordenada, são relativamente independentes."
Crédito, BOE, TORSTEIN/AFP via Getty Images
Legenda da foto, 'Milner é um clássico da psicologia', afirma Ruiz. Nesta foto, de 2014, ela recebe o Prêmio Kavli por suas extraordinárias contribuições à neurociência
Anteriormente, pensava-se que não havia uma localização específica da memória, e que não importava se nossas memórias eram de imagens, palavras ou aprendizado motor.
"Quando Milner descobre esta dissociação em alguém que não forma novas memórias, mas que pode aprender, embora não se lembre de que está aprendendo, o que ela está nos dizendo é que cada uma dessas funções é controlada por sistemas diferentes e, especificamente no que diz respeito à memória, a ideia que ela propõe é que temos de concebê-la como um conjunto de sistemas, não como algo unitário."
O professor explica que a cirurgia a que Henry foi submetido danificou determinadas estruturas do cérebro dele — e, portanto, os sistemas de memória vinculados a elas.
"Mas a memória processual, as estruturas que regulam os hábitos e as habilidades motoras haviam ficado intactas", conforme refletido em seu desempenho no teste do espelho.
Luz sobre o hipocampo
Na cirurgia, Henry teve partes do sistema límbico, que fica no centro do cérebro, removidas.
"Até aquele momento, as estruturas deste sistema não haviam sido relacionadas especificamente às funções cognitivas ou à memória, mas haviam sido vinculadas às emoções", explica Ruiz.
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Legenda da foto, O hipocampo, destacado em laranja, está localizado tanto no hemisfério direito quanto esquerdo do cérebro
"A descoberta de Milner ao estudar HM é que HM não é capaz de formar novas memórias, e que a estrutura do sistema límbico que havia sido mais afetada — não foi a única, hoje sabemos que houve mais — foi o hipocampo, que até então estava relacionado ao olfato e aspectos sensoriais."
"Com o trabalho de Milner, ficou clara a importância da estrutura do hipocampo para a memória, na criação e armazenamento de novas memórias."
"A memória de longo prazo, o conhecimento que aprendemos há muito tempo, é um armazenamento que ocorre, do ponto de vista do cérebro, em outros locais, além do hipocampo e das estruturas límbicas."
É por isso que Henry conservava tantas lembranças da infância.
"Brenda não só conseguiu documentar a amnésia profunda sofrida por HM, mas, devido à sua experiência anterior com outros casos, ela também conseguiu formular um modelo sobre o papel funcional do hipocampo na formação de novas memórias, informação que hoje se encontra em todos os livros didáticos", escreveu Zatorre.
Os sistemas de memória
Com os avanços da neurociência e da psicologia cognitiva, diferentes sistemas e subsistemas de memória foram descritos. Veja a seguir alguns tipos de memória:
- De trabalho: relacionada ao armazenamento temporário de informações;
- Processual: associada a habilidades manuais, saber como realizar determinadas tarefas e atividades;
- Episódica: lembrar-se de algo que aconteceu, um evento, por exemplo, uma viagem;
- Semântica: sistema consciente de memória no qual trabalhamos com material que podemos verbalizar continuamente;
- Autobiográfica: ligada às memórias com as quais construímos nossa história e identidade pessoal.
Legenda da foto, Ações e declarações de Trump provocaram a ira de alguns canadensesArticle information
Author, Santiago Vanegas e Lindsey Galloway
Role, Da BBC News
Há 1 hora
Muitos canadenses estão irados com Trump.
E uma das maneiras de fazer isso é parando de viajar para seu vizinho do sul.
A agência Statistics Canada registrou uma queda de 23% nas viagens de carro de residentes canadenses para os EUA em fevereiro de 2025, em comparação ao mesmo mês do ano anterior. Além disso, as viagens aéreas caíram 13%.
A jornalista canadense Kate Dingwall está entre os canadenses que cancelaram suas viagens aos EUA.
"Meu parceiro e eu decidimos não prosseguir com nossas férias planejadas para os EUA este ano", disse ela.
"Estou preocupada com a fronteira e por ficar presa lá por algum motivo, especialmente com Trump sendo tão exigente com o Canadá. Há uma sensação de desconforto em visitar os EUA agora", ela acrescentou.
Keith Serry, um escritor e comediante de Montreal, cancelou cinco shows em abril em Nova York devido à situação política.
"A verdade é que não me sinto seguro viajando para os EUA agora. Além disso, tenho uma forte aversão a gastar meu dinheiro de qualquer forma que possa ajudar a economia de um país hostil", ele escreveu em sua página do Facebook.
Muitos também optaram por substituir os produtos americanos que costumavam comprar por produtos canadenses, como mostram centenas de postagens nas redes sociais com a hashtag #BuyCanadian.
Crédito, Getty Images
Legenda da foto, A cada ano, os EUA recebem mais visitas de moradores do Canadá do que de qualquer outro país
Turismo interno
A decisão de viajantes como Dingwall e Serry está alinhada à mensagem dada pelo ex-primeiro-ministro Justin Trudeau em resposta ao anúncio de Donald Trump de que imporia tarifas de 25% sobre produtos canadenses.
"Os canadenses estão magoados. Os canadenses estão bravos. Vamos escolher não tirar férias na Flórida ou em Old Orchard Beach, no Maine", disse Trudeau.
"Agora é a hora de escolher o Canadá. Isso pode significar mudar seus planos de férias de verão para ficar aqui", disse ele em outra declaração.
Em 2024, o Departamento de Viagens e Turismo dos EUA registrou 20,2 milhões de visitas de residentes canadenses.
Embora seja muito cedo para saber quanto esse número diminuirá como resultado do atual sentimento antiamericano, especialistas preveem um impacto econômico significativo.
A Travel Association, organização que representa o setor de turismo dos EUA, alerta que uma redução de 10% no número de viajantes canadenses significaria mais de US$ 2 bilhões perdidos anualmente nos EUA e 14 mil empregos perdidos.
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Legenda da foto, Várias províncias canadenses retiraram bebidas alcoólicas americanas de suas prateleiras
As medidas e mensagens de Trump
Donald Trump se referiu ao Canadá como "o 51º Estado" pela primeira vez em dezembro de 2024, um mês antes de sua posse.
O que inicialmente parecia uma piada se transformou em uma séria ameaça quando ele declarou que planejava usar sua "força econômica" para anexar o Canadá, uma mensagem que naturalmente provocou rejeição dos canadenses.
Dias depois, foram anunciadas tarifas.
"O que ele quer é ver um colapso total da economia canadense, porque isso tornará mais fácil para ele nos anexar", disse Trudeau na época.
Somando-se às tarifas e à ameaça de anexação está o caso da atriz canadense Jasmine Mooney, que disse ter sido detida e "algemada" pelo Serviço de Imigração e Alfândega por 12 dias.
Seu testemunho deixou muitos canadenses com medo de viajar.
Ryan Northcott, um canadense que diz ter cancelado sua viagem para Nova York, afirmou em um vídeo no TikTok: "Eu vi o que aconteceu com Jasmine Mooney e vi vídeos de quando você vai para a fronteira, eles verificam tudo [...] Há algo que simplesmente não parece certo para mim, sem mencionar como o Canadá está sendo tratado."
Além disso, uma ordem de Trump que afeta diretamente os viajantes canadenses também gerou reação negativa.
Como parte de seus planos para "proteger o povo americano da invasão", o governo dos EUA começou a exigir que viajantes canadenses que entram no país por terra se apresentem às autoridades após completar 30 dias no país.
Anteriormente, os canadenses podiam entrar sem registro e permanecer por até seis meses sem visto.
Agora, o próprio governo canadense indica em seu último aviso aos viajantes que "o não cumprimento do requisito de registro pode resultar em penalidades, multas e processos por contravenções".
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Legenda da foto, "Nunca 51º estado", dizia um cartaz em uma manifestação em Ottawa
'Snowbirds'
Os mais afetados por essa medida foram os snowbirds, apelido dado aos canadenses, muitos deles aposentados, que viajam todos os anos durante o inverno para destinos mais quentes, como Flórida ou Arizona, geralmente por mais de 30 dias.
De acordo com a Associação Canadense de Snowbirds, esse número é superior a um milhão.
Em um grupo do Facebook para canadenses que viajam para o exterior, a irritação com Donald Trump está por toda parte.
"Não há como nós, canadenses, continuarmos a nos aglomerar nos EUA durante o inverno", dizia uma postagem.
"Sou canadense e não suporto Trump. Eu não culparia nenhum compatriota canadense por não querer viajar ou tirar férias nos EUA", disse outro.
Stephen Fine, presidente da Snowbird Advisor, uma empresa dedicada a fornecer informações e serviços para migrantes sazonais canadenses, disse à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) que, como as relações entre os dois países se deterioraram com o fim do inverno, não é segredo que menos canadenses estão indo para os EUA.
No entanto, "em geral, há um sentimento negativo entre os canadenses que viajam para o inverno, e alguns dizem que não têm intenção de retornar aos EUA no ano que vem", diz Fine.
Os professores Valorie Crooks e Jeremy Snyder, que estudaram o fenômeno dos migrantes sazonais do Canadá para os EUA, argumentam que "acessibilidade e facilidade de movimento são dois fatores importantes que permitem viagens sazonais de longo prazo".
"Portanto, não é de se surpreender que estejamos ouvindo falar dos 'snowbirds' novamente em vista dos eventos recentes", acrescentam.
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Legenda da foto, Centenas de milhares de canadenses viajam durante o inverno do norte para Estados americanos como Flórida e Arizona
Efeito econômico
A Tourism Economics, empresa especializada em previsões do setor de turismo, passou de uma previsão de crescimento de 8,8% nas viagens aos EUA em 2025 para um declínio de 5,1% até 2024.
A empresa observou que a mudança se deve à "tensão nas relações diplomáticas" e às "tarifas excessivas".
Para as companhias aéreas, o impacto da situação atual no relacionamento Canadá-EUA já parece ser significativo.
De acordo com Mike Vernot, porta-voz da empresa de análise de dados de aviação Cirium, "as companhias aéreas reduziram o número de assentos em voos entre o Canadá e os EUA em aproximadamente 4,4% em abril, maio e junho, em comparação com suas programações publicadas em 31 de janeiro".
Alguns destinos nos EUA serão particularmente afetados, de acordo com dados da Cirium. Em 31 de janeiro, 2.024 voos estavam programados do Canadá para os aeroportos de Fort Lauderdale e Miami para abril, maio e junho de 2025. Em 25 de março, esse número caiu para 1.799.
Além disso, a Flair Airlines, uma companhia aérea canadense de baixo custo, não operará mais sua rota Toronto-Nashville. E a WestJet, que havia anunciado que abriria um voo de Calgary para o Aeroporto LaGuardia, em Nova York, confirmou recentemente que não o fará mais.
E não é porque os canadenses estão parando de viajar para o exterior. Eles estão apenas viajando menos para os EUA.
"Recebemos perguntas de pessoas procurando destinos alternativos para o ano que vem. Os mais populares são México, Espanha, Portugal e Caribe", disse Stephen Fine, da Snowbird Advisor.
Diarmaid O'Sullivan, diretora de vendas e marketing de um hotel nas Bermudas, descreveu um aumento incomum de clientes canadenses interessados em realocar eventos que haviam planejado inicialmente nos EUA.
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Legenda da foto, A WestJet, segunda maior companhia aérea do Canadá, já ajustou sua oferta de voos para refletir as tendências de mudança da demanda
Curiosamente, tudo isso está acontecendo no momento em que os EUA vivenciavam um crescimento recorde no setor de viagens e turismo.
De acordo com um relatório do Conselho Mundial de Viagens e Turismo, a indústria do turismo dos EUA movimentou US$ 2,26 trilhões, o maior valor do mundo.
"Esses números nos ajudam a entender a importância do setor nos EUA e demonstram que um declínio no turismo dos principais países de origem pode prejudicar significativamente a economia dos EUA", disse Marta Soligo, professora da Universidade de Nevada, em Las Vegas.
"As consequências desses problemas podem afetar tanto grandes corporações sediadas nos EUA quanto pequenas empresas", acrescentou.
O boicote canadense também acendeu alarmes no setor imobiliário, já que os canadenses são os maiores compradores estrangeiros de imóveis nos EUA, de acordo com a Associação Nacional de Corretores de Imóveis.
Amar Charles Marouf, um cidadão canadense, resume o boicote como uma questão de valores: "Somos um país que se orgulha, imperfeitamente, mas intencionalmente, de valores como inclusão, equidade e direitos humanos. Quando esses valores parecem fora de sintonia com o que está acontecendo do outro lado da fronteira, fica mais difícil justificar nossa participação lá."
O Canadá não é o único país que vê as medidas do governo Donald Trump com desconfiança.
Desde 20 de janeiro, França, Dinamarca, Alemanha, Finlândia e Reino Unido também emitiram alertas para seus cidadãos que planejam viajar para os EUA.
Legenda da foto, Jaguar Land Rover é uma empresa britânica como foco no mercado de veículos de luxo
Há 33 minutos
A fabricante britânica de automóveis de luxo Jaguar Land Rover (JLR) informou que "vai pausar" os envios de veículos para os EUA em abril, enquanto avalia "os novos termos comerciais" após as tarifas impostas pelo presidente Donald Trump. O anúncio feito por Washington disparou temores de uma grande guerra comercial mundial.
"Enquanto trabalhamos para abordar os novos termos comerciais com nossos parceiros comerciais, estamos tomando algumas medidas de curto prazo, incluindo uma pausa nos envios em abril, enquanto desenvolvemos nossos planos de médio e longo prazo", disse a JLR em um comunicado enviado por e-mail à BBC.
A JLR confirmou a suspensão temporária das exportações depois que a informação havia sido publicada no jornal britânico The Times.
Esta é a primeira entre as grandes automotivas mundiais — um dos setores mais afetados pela medida — que toma a decisão de interromper o envio de seus produtos após o anúncio do aumento de tarifas por parte dos EUA a mais de 100 países.
De acordo com o governo Trump, o aumento tarifário tem como objetivo equilibrar a balança comercial dos EUA com o resto dos países.
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Legenda da foto, O presidente dos EUA, Donald Trump, disse que as tarifas sobre carros importados levaria a um "tremendo crescimento" para a indústria automobilística americana, estimulando a geração de empregos e investimentos
No entanto, para muitos especialistas, a medida não só não ajuda a reduzir o déficit comercial dos EUA, mas também altera as bases do comércio global estabelecidas após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Por sua vez, o presidente americano assinalou, antes de se conhecer a decisão da JLR e após o anúncio da China de aplicar um aumento de tarifas de 34% aos produtos provenientes dos EUA, que os próximos meses vão ser "duros", mas os resultados serão extraordinários.
"A China e muitas outras nações nos trataram de forma insustentável", escreveu Trump em sua conta na rede Truth Social.
"Fomos o 'lugar para chicotear' [do comércio global], tolo e indefeso, mas não mais".
O presidente também pediu paciência aos americanos enquanto avança a aplicação das tarifas.
"Este governo está comprometido a recuperar empregos e empresas como nunca antes. Esta é uma revolução econômica e venceremos. Aguentem, não será fácil, mas o resultado final será histórico", declarou.
Legenda da foto, Os pesquisadores estimam que não há mais de 200 indígenas na tribo da Ilha Sentinela do Norte.Article information
Author, Redação
Role, BBC News Mundo
Há 1 minuto
Pouco se sabe sobre os habitantes da Ilha Sentinela do Norte, localizada no meio do Oceano Índico. Não se sabe que idioma eles falam, nem o número exato de indígenas que vivem isolados nesse local a 1.200 km da Índia continental.
O mistério que envolve essa pequena tribo levou vários curiosos a tentar se aproximar deles, algo que as organizações de povos indígenas descrevem como uma "nova e crescente ameaça" para a população local.
Especialmente depois do que aconteceu em 31 de março, quando Mykhailo Viktorovych Polyakov, um turista americano de 24 anos, desembarcou na ilha sem autorização.
Em mais uma tentativa de um visitante de conhecer membros dessa comunidade, Polyakov não apenas registrou parte de sua jornada, mas também deixou uma lata de refrigerante e um coco na praia.
Como a entrada é restrita - por uma lei de 1956 que busca proteger a integridade dos habitantes locais - as autoridades indígenas locais detiveram o jovem americano.
Legenda da foto, A Ilha Sentinel do Norte está localizada a 1.200 km da Índia continental.
"Os influenciadores são vistos como uma ameaça crescente a essa tribo indígena isolada", disse à BBC Mundo a jornalista da BBC Marathi Janhavee Moole, de Mumbai.
Antropólogos e ativistas indígenas expressaram preocupação com as tentativas de alguns indivíduos de entrar em contato com a tribo nos últimos anos. Eles acreditam que a tribo já deixou claro mais de uma vez seu desejo de não ter contato com pessoas de fora e exigem que isso seja respeitado.
A Survival International, uma organização de direitos indígenas, alegou que o americano colocou em risco sua própria vida e a da tribo com sua visita.
Ele também descreveu o fato como "profundamente perturbador" e alertou que os influenciadores representam uma "nova e crescente ameaça" para essas tribos.
Por sua vez, as autoridades dos EUA disseram que estão cientes do caso e que irão "monitorar de perto a situação".
Mas quem são os habitantes de Sentinel e qual é o risco de visitá-los?
Isolada da Índia
Essa tribo vive em uma pequena ilha chamada North Sentinel Island no arquipélago de Andaman e Nicobar, um grupo de ilhas a cerca de 1.200 km da Índia continental.
Nelas vivem cinco tribos consideradas "particularmente vulneráveis". Entre elas estão os Jarawa e os Sentinelenses do Norte, que permanecem em grande parte isolados do resto do mundo.
O pouco que se sabe sobre eles é que migraram da África há cerca de 60.000 anos, são uma das poucas tribos de caçadores-coletores do mundo e habitam uma pequena área de selva.
Os especialistas estimam que entre 50 e 200 pessoas compõem a tribo, embora não se saiba o número exato. Sua cultura ainda não é conhecida, nem mesmo seu idioma, que é nitidamente diferente dos outros idiomas das ilhas próximas.
Eles também se distinguem pelo uso de arcos e flechas, ferramentas com as quais caçam e se defendem, e têm se mostrado hostis aos forasteiros.
"Os Sentinelenses são conhecidos por sua hostilidade contra qualquer estrangeiro. Eles tendem a evitar qualquer tentativa de contato e, em algumas ocasiões, responderam com força letal", diz Moole.
Em 1974, um cineasta visitante foi atingido na perna por uma flecha em chamas enquanto sua equipe tentava filmar um documentário para a National Geographic.
E em novembro de 2018, John Allen Chau, um americano de 27 anos, foi morto pela tribo depois de visitar a ilha.
As autoridades locais disseram que o jovem era um missionário cristão.
Ele foi alvejado com arcos e flechas. Relatos da época sugeriam que ele havia subornado pescadores para levá-lo à ilha.
Crédito, INDIAN COASTGUARD/SURVIVAL INTERNATIONAL
Legenda da foto, As tentativas de entrar em contato com os moradores fracassaram.
Ilhas estratégicas
Pesquisadores indígenas realizaram alguns estudos e tentaram estabelecer contato com a tribo.
Em 1991, eles distribuíram alguns presentes doces, como cocos, e tentaram se comunicar em linguagem de sinais, mas não obtiveram uma boa resposta. Como resultado, pouco tempo depois, o governo indiano abandonou essas expedições e proibiu a entrada de pessoas de fora da ilha.
Após o tsunami de 2004, o governo fez um reconhecimento para se certificar de que os habitantes da ilha estavam vivos, mas quando os helicópteros sobrevoaram a ilha, os habitantes locais atiraram neles com flechas.
O grupo de ilhas, do qual o Sentinel faz parte, é estrategicamente importante para a Índia, pois está localizado na Baía de Bengala, próximo às principais rotas marítimas do Indo-Pacífico.
Dessa forma, esse local é estabelecido como um ponto estratégico para monitorar o tráfego marítimo no Estreito de Malaca, uma rota comercial importante para muitos países, inclusive a China.
Por esse motivo, a Índia tem procurado construir um porto internacional de transbordo de contêineres semelhante ao de Hong Kong na região. No entanto, muitos acreditam que esses projetos podem representar uma ameaça existencial para a tribo.
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Legenda da foto, As Ilhas Andaman e Nicobar ficam na costa leste da Índia.
O risco de visitas à tribo
Os habitantes dessa tribo viveram em isolamento quase total por dezenas de milhares de anos.
Isso significa que eles provavelmente não têm imunidade a doenças comuns, como gripe ou sarampo.
Por esse motivo, as visitas foram proibidas desde 1956 devido ao risco de a tribo ser contaminada por doenças de fora da comunidade.
Nesse sentido, a guarda costeira indiana mantém um olhar atento sobre a área ao redor da ilha para evitar que os curiosos se aproximem do local.
"Aproximar-se deles pode ser fatal, já que eles geralmente não recebem pessoas de fora e já demonstraram hostilidade contra qualquer um que se aproxime no passado", diz Moole, de Mumbai.
É a crescente exposição da tribo que preocupa os grupos de proteção indígena.
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Legenda da foto, Os Jarawa, juntamente com o povo Sentinel, são uma das tribos mais isoladas do mundo.
Legenda da foto, Três das voluntárias que participaram do Estudo das Freiras, em foto tirada em 2001Article information
O ano era 1986. O epidemiologista e professor de neurologia David A. Snowdon começava a investir num projeto inusitado: acompanhar centenas de freiras para entender os fatores por trás do envelhecimento e do desenvolvimento de diversos tipos de demência, como o Alzheimer.
Passadas quase quatro décadas, o chamado Nun Study (ou "Estudo das Freiras", em tradução livre) ajudou a desvendar alguns dos principais mecanismos por trás das falhas de memória e do raciocínio — e é celebrado como um "divisor de águas" por especialistas da área.
Essa pesquisa permitiu entender, por exemplo, o papel da reserva cognitiva — e da educação — na prevenção da demência. Ela também ajudou a identificar genes que aumentam o risco de Alzheimer. E ainda descobriu que várias doenças simultâneas podem levar ao apagamento das lembranças no cérebro.
Mas o trabalho não acabou: graças aos avanços na digitalização de documentos e à inteligência artificial, os responsáveis pelo projeto apostam que o Estudo das Freiras ainda vai responder mais perguntas sobre essa enfermidade, que já afeta 55 milhões de pessoas ao redor do mundo.
Conheça a seguir por que esse trabalho prestes a completar 40 anos é tão celebrado por cientistas — e os detalhes do que ele ajudou a entender sobre o Alzheimer.
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Legenda da foto, As irmãs Alcantara (à esquerda), de 91 anos, Claverine (ao centro), 87, e Nicolette, (à direita), 94, foram três das voluntárias do Estudo das Freiras. Foto tirada em 2001
Condições únicas e riqueza de detalhes
Snowdon, que hoje está aposentado, conseguiu uma coisa rara: ele convenceu um grupo de freiras católicas enclausuradas da ordem das Irmãs Escolares de Nossa Senhora a participar de um estudo científico.
A primeira era que as irmãs deveriam fazer exames anuais, para avaliar como estava o estado cognitivo e físico. A segunda era que elas deveriam compartilhar o histórico médico e outros documentos relevantes, como diários ou cartas que escreveram assim que entraram no convento. O terceiro e último ponto: todas deveriam concordar em doar o cérebro após a morte.
No total, 678 freiras toparam o desafio. No início da pesquisa, em 1991, todas estavam com mais de 75 anos e moravam em diferentes conventos da ordem religiosa espalhados por sete cidades dos Estados Unidos. Todas elas já faleceram.
O estudo começou a ser conduzido na Universidade de Minnesota. Depois, foi transferido para a Universidade do Kentucky. Após a aposentadoria de Snowdon, o trabalho voltou à Universidade de Minnesota, passou pela Universidade de Northwestern e agora é realizado no Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em San Antonio (UT Health San Antonio).
Mas por que avaliar um grupo como esse pode ser tão valioso?
"Esse estudo é um divisor de águas porque ele avalia uma população muito homogênea", responde a médica Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Ou seja: o Estudo das Freiras reuniu um grupo de mulheres cujo estilo de vida era muito similar.
Todas elas entraram para o convento ainda jovens, entre o fim da adolescência e o início da vida adulta. Além disso, não bebiam, tinham uma dieta parecida, um mesmo nível socioeconômico, um padrão comparável de atividade física e intelectual, acesso aos serviços de saúde…
"Com isso, fica mais fácil evitar possíveis fatores de confusão e ver o impacto de alguns elementos específicos no desenvolvimento da demência, como a educação e o estímulo cognitivo em diferentes fases da vida", complementa Brucki.
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Legenda da foto, A pesquisa com as freiras americanas revelou como a construção de uma reserva cognitiva é importante para atrasar o aparecimento de sintomas da demência
A importância de uma 'poupança' cerebral
Os especialistas consultados pela BBC News Brasil foram unânimes em afirmar que a maior contribuição do Estudo das Freiras está relacionada ao conceito de reserva cognitiva e resiliência.
Lembra que as freiras toparam doar diários e cartas que escreveram?
Um dos requisitos que todas cumpriram ao entrar na ordem religiosa, quando tinham aproximadamente entre 18 e 22 anos, era a de redigir uma redação, em que contavam um pouco da própria história e das motivações que as levaram a adotar o hábito.
Ao analisar esses materiais, os pesquisadores observaram uma relação entre a complexidade das cartas escritas na juventude com a probabilidade de desenvolver demência décadas depois.
Em outras palavras, as autoras de textos mais rebuscados e profundos, com um vocabulário mais extenso e variado — sinais de uma maior habilidade linguística e um nível educacional avançado —, apresentaram um menor risco de Alzheimer na velhice.
Já aquelas que escreveram cartas mais simples e menos densas, com um menor léxico ou ideias mais superficiais, tinham maior probabilidade de sofrer com a doença que afeta a memória e o raciocínio.
Esses achados ajudaram a sedimentar a ideia de reserva cognitiva — uma espécie de "poupança" cerebral que construímos ao longo da vida toda vez que nos engajamos numa atividade que estimula a mente, como ir para a escola, fazer um curso, ler um livro e aprender um novo idioma.
A neurologista Elisa Resende compara esse mecanismo que atua sobre o cérebro ao efeito dos treinos de academia sobre os músculos.
Isso porque as atividades cognitivas fortalecem e criam novas conexões entre os neurônios, conhecidas como sinapses.
Vamos pensar no caso de uma pessoa que fez muita "musculação cerebral" durante a vida e, por isso, construiu ou fortaleceu muitas dessas sinapses entre os neurônios.
"Se ela tiver uma demência, pode até perder algumas dessas conexões e vias, mas ainda terá outros caminhos para fazer tarefas cognitivas relacionadas à memória e ao raciocínio", explica Resende, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
"Agora, caso o indivíduo tenha uma baixa reserva cognitiva, ao perder as poucas conexões disponíveis, ele já começa a sentir os efeitos da doença", compara ela, que também atua na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
A diferença aqui está no momento de aparecimento dos sintomas.
Por exemplo: uma pessoa com uma reserva cognitiva grande pode até ter as alterações cerebrais típicas de um quadro demencial a partir dos 60 anos. Mas ela só vai começar a sentir alguma diferença prática, no dia a dia, com o aparecimento de incômodos, uma ou duas décadas mais para frente.
Já um indivíduo com pouca "poupança cerebral" pode ter as mesmas transformações patológicas aos 60 anos. No entanto, sinais como os esquecimentos frequentes vão aparecer mais cedo, em três ou cinco anos.
Em entrevista à BBC News Brasil, a neuropatologista irlandesa Margaret Flanagan apresenta outro conceito importante aqui: a resiliência.
"Normalmente, pessoas com a doença de Alzheimer apresentam o acúmulo das proteínas beta-amiloide e Tau. Diferentes pesquisas mostram que, quando você tem uma certa quantidade dessas substâncias no seu cérebro, há o aparecimento de problemas de memória e demência", contextualiza a especialista, que é a atual responsável pelo Estudo das Freiras na UT Health San Antonio.
"Mas há um grupo específico de pessoas, incluindo algumas das freiras, cuja autópsia cerebral pós-morte revelou muitas placas e emaranhados de beta-amiloide e Tau que são compatíveis com a demência. No entanto, elas tinham a memória intacta, sem nenhum prejuízo cognitivo", conta ela.
Os pesquisadores querem entender se há algum outro fator, além do nível educacional, que ajuda a explicar esses cérebros mais resilientes aos efeitos da demência.
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Legenda da foto, O epidemiologista e professor de neurologia David A. Snowdon começou a montar o Estudo das Freiras em 1986
O papel da genética e a demência 'mista'
Cientistas apontam que o Estudo das Freiras também ajudou a entender mais a fundo a influência do DNA no aparecimento do Alzheimer.
A contribuição foi especialmente relevante para o conhecimento sobre o gene APOE4, que é considerado hoje o fator de risco genético mais importante neste tipo de demência.
"Quem apresenta uma cópia do APOE4 tem um risco até dez vezes maior de desenvolver o Alzheimer. Com duas cópias, esse risco sobe para 15 vezes", estima Resende.
"E o Estudo das Freiras foi muito importante para compreender isso, porque a presença do APOE4 nessas mulheres esteve relacionado ao desenvolvimento de demência nas primeiras avaliações ou durante o acompanhamento", resume Flanagan.
A análise do cérebro após a morte das voluntárias também permitiu saber que o apagamento das memórias e as dificuldades de raciocínio são ainda mais complexos do que o imaginado.
Isso porque muitos dos casos de demência não eram causados por um Alzheimer "puro" — ou seja, marcado exclusivamente pelo acúmulo das proteínas beta-amiloide e Tau.
A maioria das freiras apresentou uma patologia mista: os cérebros delas tinham sinais de Alzheimer, mas também de outros tipos da doença, como a demência vascular (marcada pelo fechamento de vasos sanguíneos que irrigam determinadas regiões do sistema nervoso), a demência frontotemporal, a demência por corpos de Lewy, entre outras.
"Hoje nós sabemos que, quanto mais idoso o paciente, ou mais tardia a manifestação da demência, maior a presença de diversas patologias, que se agregam no cérebro", diz Brucki.
Detalhar essa mistura de diferentes tipos de demência é muito importante, avaliam especialistas, até para pensar em novos métodos de diagnóstico e tratamentos mais efetivos, que considerem essas múltiplas manifestações e alterações que acontecem na cabeça.
"Talvez precisaremos combinar diferentes remédios para tratar esses pacientes", especula Flanagan.
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Legenda da foto, Em foto de 2001, a irmã Esther, de 106 anos, ri ao lado de David Snowdon, durante um jogo de cartas no convento das Irmãs Escolares de Nossa Senhora
Os próximos passos
Apesar de o Estudo das Freiras já estar quase com 40 anos de existência, ele parece longe de terminar.
Flanagan destaca que os cientistas trabalham agora para digitalizar "caixas e mais caixas" do acervo de cartas, exames, lâminas de autópsias e fichas médicas de todas as voluntárias.
"Com isso, seremos capazes de usar ferramentas de patologia mais sofisticadas, inclusive com o auxílio da inteligência artificial", vislumbra ela.
A esperança é que essas tecnologias permitam encontrar novas informações e descobertas sobre o Alzheimer a partir desse enorme banco de dados.
Para Brucki, uma das grandes perguntas que carece de respostas tem a ver com o início da demência.
"Por que acontece o depósito de proteínas, como a beta-amiloide e a Tau? Não sabemos como esse processo começa", lembra ela.
Já Resende tem curiosidade de entender a fundo o mecanismo preciso por trás da reserva cognitiva.
"Como isso se traduz em termos biológicos? O que a educação faz no cérebro ao criar essas conexões entre os neurônios? Como isso acontece? E para que?", questiona ela.
Enquanto as respostas para esses e outros mistérios da demência não são conhecidas, Flanagan destaca outra descoberta singela — e um tanto inspiradora — do Estudo das Freiras.
Lembra que quando as irmãs entraram para o convento elas precisavam escrever uma redação autobiográfica?
"Análises observaram que as freiras que adotaram um tom mais otimista, ou seja, olhavam o mundo sob a perspectiva do 'copo meio cheio', desenvolveram menos demência em relação àquelas que tinham uma perspectiva mais negativa ou pessimista", diz a pesquisadora.
"E essas são descobertas muito fascinantes", conclui ela.