Pacote do governo aumenta impostos mas não ataca gastos

O esboço de pacote fiscal apresentado pelo governo na noite de domingo (8) troca um imposto por outros: para compensar recuo parcial no aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o ministro Fernando Haddad (Fazenda) anunciou a intenção de criar ou elevar outras taxações, além de rever incentivos fiscais – o que na prática levaria a um aumento da carga tributária. Medidas estruturais de corte de despesas, porém, ficariam para um segundo momento.
O anúncio veio após uma série de controvérsias entre a Fazenda e o Congresso Nacional, geradas com o decreto que estabeleceu a alta do IOF, no fim de maio.
Para Carlos Pinto, diretor do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), as novas medidas evidenciam mais uma “tentativa desordenada” do governo federal de aumentar a arrecadação às pressas, sem planejamento claro ou transparência.
“O movimento reflete uma postura preocupante: a de tapar buracos de um gasto público crescente com mais carga tributária, prática que gera insegurança para o mercado interno e afasta o investidor estrangeiro”, diz.
Eduardo Natal, presidente do Comitê de Transação Tributária da Associação Brasileira da Advocacia Tributária (Abat), afirma que se trata, mais uma vez, de uma “reconfiguração unilateral da carga tributária, que escancara a prioridade arrecadatória da atual política econômica”.
De acordo com o tributarista, em vez de uma plataforma estruturada de revisão de gastos públicos, a solução apresentada pelo governo recai novamente sobre o aumento de tributos. “Essa diretriz não apenas onera setores produtivos e investidores, mas também afasta a necessária previsibilidade do ambiente econômico”, afirmou.
De forma imediata, por meio de uma Medida Provisória que será enviada ao Congresso Nacional após o regresso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) da viagem oficial à França, o governo pretende:
- cobrar 5% de Imposto de Renda sobre títulos como Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e do Agronegócio (LCA), hoje isentos;
- elevar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de instituições financeiras, incluindo as fintechs, eliminando a alíquota mínima de 9% e mantendo as demais (de 15% a 20%); e
- aumentar de 12% para 18% a taxação sobre as casas de apostas (bets).
Além disso, o governo sinalizou encaminhar ao Congresso uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para reduzir benefícios fiscais – ou, como diz o ministro, “gastos tributários”. Também estaria nos planos discutir alguma forma de contenção das despesas – mas, nesse caso, Haddad não mencionou nenhuma medida específica, nem um prazo para sua apresentação.
Cálculos preliminares da Warren Investimentos sobre o efeito de três das medidas anunciadas por Haddad para rever o decreto do IOF apontam para uma arrecadação extra da ordem de R$ 73 bilhões ao ano:
- R$ 20 bilhões ao ano, com a elevação da alíquota sobre as bets;
- R$ 3 bilhões, com a cobrança de 5% de imposto sobre LCA e LCI; e
- R$ 50 bilhões, com um corte de 10% em benefícios fiscais federais.
Com o decreto original de aumento do IOF, o governo previa arrecadar R$ 20 bilhões neste ano e R$ 41 bilhões no próximo.
Governo ignora Câmara e recorre, mais uma vez, a medidas arrecadatórias
As medidas não deixam de ser uma derrota para o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB). Motta chegou a exigir de Haddad a suspensão imediata do aumento do IOF sobre operações de risco sacado.
Após o decreto do IOF, Haddad se reuniu algumas vezes com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), e com o da Câmara para explicar a medida. No dia 28 de maio, as lideranças do Congresso estabeleceram o prazo de 10 dias para que o ministro apresentasse medidas estruturantes para rever o aumento do imposto.
Na semana passada, o ministro adiou o anúncio do novo pacote do governo, que estava previsto para a terça-feira (3), ao dizer que precisava apresentar a proposta para os líderes partidários.
No fim, após uma reunião de cinco horas com lideranças petistas e de partidos aliados no Congresso, neste domingo, Haddad finalmente anunciou as medidas que o governo vai propor, ainda que sem todos os detalhes. O encontro contou com a presença das lideranças de ambas as Casas e de partidos do Centrão, como o União Brasil, PSD, Republicanos e MDB.
Governo coloca o “bode na sala”
Eduardo Natal afirma que todo o episódio ilustra, mais uma vez, a estratégia recorrente do atual governo de colocar o “bode na sala”. “Neste caso, com o súbito aumento do IOF sobre operações de crédito e câmbio — para, posteriormente, apresentar um plano alternativo de elevação da carga tributária com maior chance de aprovação”, explicou.
De acordo com o tributarista, primeiramente o anúncio surpreendeu negativamente pela ausência de diálogo com os setores legitimados da sociedade. Além disso, o uso do IOF — imposto com natureza regulatória — com nítido objetivo arrecadatório mostrou-se inadequado e desconectado da finalidade constitucional do tributo.
“A forte reação institucional e política levou ao recuo do próprio governo, que agora reposiciona o tema, trazendo o Congresso Nacional para a mesa de negociação”, disse.
Após repercussão na imprensa de que as novas medidas seriam uma “derrota” para Motta, o presidente da Câmara afirmou, na manhã desta segunda-feira (9), que o Congresso não tem o compromisso de aprovar a MP que será encaminhada pelo governo.
“O compromisso feito sobre as medidas que virão na MP foi do Congresso debater e analisar. Elas serão debatidas pontualmente. A partir daí, vamos ver de fato o que passa dessa medida provisória. Se o Congresso não concordar com muitas das medidas que o governo vai trazer, vai haver um descasamento e nós vamos estar daqui a dois, três meses, discutindo qual o decreto que vai vir”, disse.
Medidas para rever aumento do IOF podem prejudicar economia
O advogado tributarista Luiz García, sócio do Tax Group e do MLD Advogados Associados, afirma que a estratégia do governo pode trazer prejuízos para a economia.
Na sua visão, os sucessivos e repentinos aumentos de tributos, sem nenhum sinal concreto de redução de gastos, apontam para um futuro com queda de investimentos, que pode gerar desemprego, inflação e desaceleração do consumo.
“Muito embora sejam de conhecimento geral os efeitos danosos da combinação de juros altos e carga tributária elevada, o governo parece não se dar conta disso”, diz.
A respeito da futura revisão dos benefícios fiscais concedidos a setores ou atividades específicas, a coordenadora do MBA em Gestão Tributária da FIPECAFI, Andressa Gomes, disse que haverá um impacto significativo, pois, neste momento, eles estão reduzindo consideravelmente a arrecadação tributária do governo.
“Destas movimentações econômicas-tributárias, é importante interpretá-las com a sistemática de que a ‘conta precisa fechar’, ou seja, se eu concedo de um lado, terei que compensar do outro, ainda que de forma mais ‘dolorosa’ aos brasileiros”, disse.
Taxação de LCIs e LCAs pode gerar efeitos negativos consideráveis
Outro ponto analisado pelos especialistas no novo pacote do governo é a taxação dos LCIs e dos LCAs. De acordo com Lívia Heringer, especialista em contabilidade, controladoria, finanças e mestra em Direito Tributário, a introdução da tributação sobre investimentos anteriormente isentos, pode gerar efeitos negativos consideráveis, tais como:
- Redução do incentivo à poupança, especialmente afetando pequenos investidores que buscam preservar seu patrimônio em aplicações mais seguras;
- Diminuição da rentabilidade líquida das aplicações, sobretudo em períodos de inflação elevada, comprometendo o retorno real dos investidores;
- Estímulo ao deslocamento para ativos mais arriscados, levando investidores a assumirem riscos maiores em busca de rendimentos não tributados ou com menor carga tributária, potencialmente desestabilizando o mercado;
- Redução da atratividade do país para investidores estrangeiros, que podem preferir países com políticas tributárias mais favoráveis para aplicações conservadoras.
A especialista afirma que, embora o governo busque uma solução rápida para aumentar receitas tributárias, falta clareza quanto ao compromisso real com a contenção estrutural das despesas públicas, resultando em riscos econômicos e sociais evidentes, além da possibilidade de deslocamentos indesejados de atividades econômicas para setores informais e ilegais — como no caso do aumento da taxação das bets.
Indicações futuras do governo podem agravar percepção do mercado
Já na visão de Marcelo Michauá, co-CEO da RB Asset, a alíquota de 5% sobre esses ativos é relativamente baixa, se comparada à de títulos que não são isentos, de renda fixa, e que são tributados, dependendo do prazo, em até 22%. “Então, qualquer coisa entre 100% de isenção até os 20%, 22% ou a alíquota de longo prazo, que é de 15%, você tem ainda um incentivo governamental da isenção”, disse.
“A visão é de que não teria uma saída estrutural significativa, mas talvez você tenha um pedaço desses portfólios sendo realocado para os produtos que, pela informação que a gente tem até agora, continuam isentos — por exemplo, fundos de debênture de infraestrutura incentivados”, afirmou.
Mesmo que, em princípio, Michauá não veja os 5% como motivo de preocupação, ele afirma que tudo dependerá da visão que o mercado tem a respeito das intenções do governo. “Quem diz que, potencialmente, no futuro, o governo não pode, a partir desses 5%, partir para 7%, para 10% ou 12%, até bater eventualmente os 15%, que é a alíquota de longo prazo?”, se questiona.
Carlos Pinto, do IBPT, afirma que, em vez de promover políticas que estimulem o crescimento econômico, a competitividade e a atração de investimentos, o governo opta por elevar tributos e revisitar benefícios fiscais que antes impulsionavam setores como o crédito imobiliário e o agronegócio.
“Enquanto o país precisa de estabilidade e desenvolvimento, o governo insiste em improvisos fiscais, que comprometem a previsibilidade e a confiança no ambiente de negócios. É um caminho perigoso para uma economia que precisa avançar, não retroceder”, afirmou.