Hugo Motta tenta impor agenda de ajuste fiscal ao governo Lula

Em movimento que evidencia o desgaste do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), está tentando impor uma agenda de medidas estruturais de ajuste fiscal que, até então, não estavam no radar do Planalto.
O chamado “cardápio do ajuste” proposto por Motta inclui a revisão das renúncias fiscais, a desvinculação de receitas da União e a retomada da reforma administrativa — temas que tradicionalmente enfrentam resistência de diversos grupos econômicos, corporativos e também dentro da própria base governista.
A ofensiva nasceu da insatisfação do Congresso e do setor produtivo com o decreto presidencial que elevou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para arrecadar cerca de R$ 20 bilhões neste ano e R$ 40 bilhões em 2026.
A iniciativa abriu espaço para a discussão sobre a sustentabilidade do arcabouço fiscal, na tentativa de evitar que o país se torne “ingovernável a partir de 2027”, risco admitido pela própria equipe econômica.
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O decreto do IOF, já em vigor, conta com votos suficientes para ser derrubado na Câmara, de acordo com o próprio Motta, mas seu destino ainda depende do desfecho das negociações. A equipe econômica deve apresentar uma proposta alternativa ao aumento do tributo aos líderes do Congresso em reunião no próximo domingo (8).
Na semana passada, o chefe da Casa Legislativa havia dado um ultimato de dez dias para que a Fazenda apresentasse outra forma de obter a arrecadação necessária para cumprir o Orçamento da União. Caso contrário, o decreto seria pautado para votação e derrubado.
Motta também deixou claro que um eventual recurso do governo ao Supremo Tribunal Federal (STF) — que tem se mostrado alinhado ao presidente Lula — “seria mal recebido pelo Legislativo”.
Na prática, o presidente da Câmara endureceu o jogo, elevando o custo político para a aprovação de futuros projetos do governo e deixando evidente um reposicionamento do Congresso como protagonista na formulação da política econômica. O movimento também escancarou o enfraquecimento do ministro Fernando Haddad dentro do próprio governo.
Impasse posterga decisão sobre alternativa
Diante da pressão, o governo se apressou, e Haddad prometeu, para a terça-feira (3), um pacote de medidas de compensação fiscal. O próprio Lula, em coletiva pela manhã, disse que os detalhes da proposta seriam fechados durante um almoço em sua casa.
O anúncio não aconteceu como previsto e expôs o conflito de agendas entre Executivo e Legislativo. A justificativa oficial foi a necessidade de negociar os pontos com os líderes dos partidos — explicação pouco convincente para a oposição, considerando que Motta e Alcolumbre já conhecem o posicionamento dos parlamentares.
“Estamos tendo esse cuidado todo porque nós dependemos dos votos do Congresso Nacional. O Congresso Nacional precisa estar convencido de que é o caminho mais consistente do ponto de vista da política macroeconômica”, disse Haddad aos jornalistas.
O impasse girou em torno das propostas colocadas à mesa. Haddad não deu detalhes sobre o que será apresentado. Vazaram informações sobre um chamado “pacote do petróleo”, que incluía a antecipação de receitas do pré-sal, apresentado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira. A medida, que gera arrecadação extra e não recorrente, já estava prevista no Orçamento, segundo informou Haddad mais tarde, evidenciando a falta de articulação entre integrantes do próprio governo.
Motta, por sua vez, já havia sinalizado a necessidade de medidas mais estruturantes e reforçou a intenção na conversa com os jornalistas. “Estamos em sintonia na busca de alternativas à medida tomada pelo governo com o aumento do IOF, para podermos encontrar uma pauta que não apenas resolva o problema pontual, imediato da questão fiscal para o ano de 2025, mas que permita avançar numa discussão mais abrangente, mais estruturante, em favor do país”.
Propostas de Hugo Motta incluem temas sensíveis
Entre as prioridades elencadas pelo presidente da Câmara está a desvinculação dos pisos constitucionais de saúde e educação, atualmente fixados em 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) para saúde e 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI) para educação.
A mudança nos pisos é vista como um primeiro passo para outras desvinculações, com o objetivo de tornar o Orçamento menos engessado. O passo seguinte seria a desvinculação do salário mínimo dos benefícios sociais.
Questionado sobre o tema na coletiva, Lula desconversou, mas pela primeira vez não rechaçou a alternativa. “Eu não posso dar palpite sim ou não, eu preciso ver qual é a proposta que as pessoas estão discutindo”, afirmou. “Não vou me apressar, não posso ser o estragador, sabe, de uma reunião que está durando há dois dias, e dar um palpite aqui favorável ou contra uma coisa que eles nem estão propondo.”
Além disso, Motta defende uma revisão dos incentivos tributários — tema altamente espinhoso junto ao setor produtivo, organizado em lobbies que influenciam as votações. Entre 2015 e 2024, o país abriu mão de aproximadamente R$ 1,25 trilhão em renúncias fiscais, segundo dados do Tesouro Nacional.
Sobre o assunto, Lula chegou a citar a perda de arrecadação com a desoneração da folha de pagamentos, sem a compensação necessária, como causa da alta do IOF.
“Agora o governo fica se matando para cortar R$ 30 bilhões do Orçamento? Esse dinheiro poderia ser retirado da desoneração, desses R$ 800 bilhões. Acontece que as pessoas acham que é um direito adquirido”, disse o presidente.
Reforma administrativa volta à agenda
A reforma administrativa também voltou ao centro da agenda do Legislativo, mesmo sendo uma proposta de efeitos mais concentrados nos médio e longo prazos. A resistência interna ao tema é grande, principalmente entre partidos de esquerda e setores aliados ao governo, que não querem associar a reforma a um pacote de cortes.
“Mudar o regime de contratação e estabilidade do funcionalismo público é mexer num vespeiro, com sindicatos organizados, categorias mobilizadas e resistências dentro da própria base parlamentar”, afirma o cientista político João Lucas Moreira Pires.
Ainda assim, Motta confiou ao deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) a missão de ampliar o grupo técnico responsável pelo tema, agora com a orientação de apresentar, em até 45 dias, um relatório que contemple, além da reforma do funcionalismo, outras medidas permanentes para aliviar a pressão sobre as contas públicas.
Outras propostas que compõem a lista de medidas para o ajuste de Motta são a limitação de deduções de despesas médicas no Imposto de Renda — que deve enfrentar resistência da classe média e do setor de saúde — e uma maior taxação das fintechs, das “bets” (apostas) e dos criptoativos.
Motta aproveita fragilidade de Executivo, diz especialista
Mais do que responder à crise, Hugo Motta sinaliza a intenção de deixar sua marca à frente da Câmara dos Deputados. Ainda não está claro se todas as pautas propostas serão levadas adiante, mas a iniciativa revela o cálculo político para acumular protagonismo, se consolidar como uma liderança e diferenciar sua gestão.
“Hugo Motta viu no IOF uma oportunidade de constranger o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e de se afirmar como ator protagonista de uma agenda estruturante, num momento em que o governo tenta sobreviver politicamente”, avalia Pires.
Duas pesquisas – do PoderData, divulgada nesta terça-feira (3), e da Quaest, nesta quarta (4) – mostram desaprovação de 56% e 57%, respectivamente. Segundo os levantamentos, Lula é aprovado por apenas 39% e 40% dos entrevistados, respectivamente.
Em ambas as pesquisas, a tendência de alta na desaprovação vem pelo menos desde julho do ano passado, quando ainda era menor que a aprovação. No entanto, começou a se elevar até ultrapassar a avaliação positiva nos últimos meses de 2024.
Para Pires, a fragilidade de Lula, sem uma base parlamentar fiel, tem obrigado o governo a ceder espaço e instrumentos de controle orçamentário ao Congresso. “Essa dependência abre caminho para que a Câmara assuma protagonismo na condução de pautas econômicas e estruturais que, historicamente, seriam de responsabilidade do Executivo”, diz. “Motta atua como o regente de um semipresidencialismo informal.”
Além disso, a dificuldade do ministro da Fazenda em articular reformas e emplacar medidas no Congresso — somada às divisões internas dentro do próprio governo — cria um “vácuo de liderança na formulação da política econômica”.
“Haddad é o personagem trágico desse enredo. Ele entrou no governo com a aura de herdeiro moderado de Lula e com o aval do mercado, um tecnocrata com vocação política”, lembra. “Mas o que encontrou foi um governo minoritário, um Congresso hostil e um presidente da Câmara com mais influência sobre o Orçamento do que o próprio Ministério da Fazenda.”
Tentativa de Motta é deixar marca pessoal
Graziella Testa, professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV, afirma que a iniciativa de Hugo Motta vem na esteira da necessidade do atual comando do Congresso Nacional — Senado e Câmara — de dizer a que veio.
“O Legislativo tem sofrido muita perda de popularidade — e com razão — porque tem demonstrado muito pouco compromisso com a saúde fiscal, especialmente quando falamos das emendas parlamentares, que a cada ano aumentam, e também do próprio fundão eleitoral”, diz.
Para ela, a Câmara tenta barrar uma “proposta que é flagrantemente impopular” e a consequência do ataque de Hugo Motta aos pontos estruturais do Orçamento é bem-vinda, apesar de estar permeada de interesses políticos. “Todo presidente da Câmara gosta de deixar um legado, de se apresentar como responsável por uma grande reforma”, diz.
“A reforma administrativa, por exemplo, foi defendida várias vezes por Arthur Lira, mas não andou. Retomar esse debate é, sim, papel do presidente da Câmara e seria ótimo se acontecesse de fato.”
Testa, no entanto, tem dúvidas se a intenção se traduzirá, de fato, numa ação efetiva. “Pode ser apenas uma sinalização”, adverte. “Motta sabe que, se houver um impacto negativo decorrente de uma balança fiscal desequilibrada, esse impacto não vai recair sobre o Congresso. Vai recair sobre o presidente da República. Mas ele precisa deixar claro para o eleitorado que fez tudo que estava ao seu alcance. Então, o que ele pode querer dizer é ‘Eu tentei’.”
Ela destaca que, se houvesse de fato uma preocupação real com reformas estruturantes, “o Orçamento já estaria sendo organizado de forma mais coerente, buscando reduzir o peso excessivo das emendas parlamentares, por exemplo”.
O presidente da Câmara já admitiu a possibilidade de enfrentar um cenário de corte de emendas parlamentares, uma vez que, sem a arrecadação do IOF, o governo teria de cortar R$ 12 bilhões em emendas. Mas o ponto é visto com descrença também por integrantes do governo.
Para Moreira Pires, o movimento atual pode resultar em reformas concretas ou apenas “em manchetes de ocasião”. “Dependerá da disposição do próprio Motta em arcar com o desgaste e liderar o embate até o fim”, diz.
“Até aqui, Hugo Motta tem jogado com habilidade, mas sem rasgar a lógica do sistema que o beneficia. Se quiser entrar para a história como estadista e não apenas como maestro de um Parlamento empoderado, precisará romper com o conforto da manipulação orçamentária e assumir as dores reais da reforma. E essa, até agora, não parece ser a escolha preferencial de Brasília.”