Como o protecionismo europeu afeta o agro brasileiro

Ainda antes da criação de barreiras tarifárias pelo presidente americano Donald Trump, a escalada do protecionismo no comércio global vem prejudicando o agronegócio brasileiro. Na Europa, sob a justificativa de proteger o meio ambiente, mecanismos como o Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR), ainda para entrar em vigor, já criam entraves para a exportação de produtos nacionais.
A mesma suposta preocupação ambiental foi um dos principais fatores a travar o avanço do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, cujas negociações foram encerradas em dezembro do ano passado após 25 anos de discussão.
Daniel Vargas, professor da Escola de Economia de São Paulo (EESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), explica que aumento das exigências ambientais esconde razões que passam longe da preocupação com o futuro do planeta.
Entre os principais motivos para a maior seletividade dos fornecedores está a emergência econômica do mundo em desenvolvimento, que ameaça o domínio dos países desenvolvidos. Nesse sentido, medidas que restrinjam as importações ajudam a proteger a agricultura e a indústria domésticas, na mesma linha das barreiras tarifárias aplicadas pelos Estados Unidos recentemente.
“Há uma tendência protecionista em que os países começam a criar barreiras tarifárias e não tarifárias para proteger sua indústria e seu mercado de trabalho para ganhar vantagens competitivas em setores estratégicos, para se proteger de vulnerabilidades internacionais há pelo menos uns 15 anos”, ressalta o economista.
Um dos principais instrumentos nesse sentido é o EUDR, aprovado em 2023 e que começaria a ser aplicado a partir de dezembro do ano passado, mas que acabou adiado em um ano após pressão internacional, incluindo do Brasil.
Em termos gerais, o regulamento exige que importadores europeus fiscalizem suas cadeias de suprimento com objetivo de garantir que os produtos importados não venham de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.
A medida abrange sobre produtos das cadeias produtivas do café, soja, óleo de palma, madeira, couro, carne bovina, cacau e borracha. O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) estima que as novas regras podem afetar 34% das exportações brasileiras para a União Europeia e 15% das exportações totais do país.
O Brasil considera oficialmente as normas do EUDR “arbitrárias, unilaterais e punitivas”, porque “desconsideram particularidades dos países produtores e impõem exigências com impactos significativos sobre os custos e a participação de pequenos produtores no mercado europeu”.
“Estas novas diretrizes dificultam o acesso ao mercado europeu de produtos brasileiros, da América Latina e de outras origens, incluindo a Ásia, ao invés de apoiar uma transição justa e sustentável. Incentivos positivos são mais eficazes na promoção da proteção ambiental, compensando e remunerando aqueles que prestam serviços ambientais”, argumenta o Mapa em nota oficial.
A pasta ressalta que o Brasil conta com uma das legislações ambientais mais rigorosas do mundo, apoiada por um sistema de comando e controle eficiente e respaldado por uma complexa estrutura de monitoramento e fiscalização.
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No âmbito do EUDR, a Comissão Europeia publicou em maio uma classificação de risco de países para o desmatamento, dividindo parceiros comerciais em grupos com chance alta, baixa ou padrão para a atividade. O Brasil ficou classificado em risco padrão, junto com outras nações latino-americanas, como México e Argentina, e asiáticas, como Indonésia e Malásia, entre outras.
Em risco alto ficaram apenas Rússia, Coreia do Norte, Belarus e Mianmar. Em nota, a comissão destacou que a lista “é um marco importante antes da entrada em vigor da legislação em 30 de dezembro de 2025 para grandes empresas e 30 de junho de 2026 para micro e pequenas empresas”.
A classificação define o grau de verificações de conformidade que as autoridades dos Estados-Membros devem prever para cada país, sendo 1% para risco baixo, 3% para padrão e 9% para alto.
A compra de produtos de países de baixo risco implica obrigações simplificadas, sem a necessidade de avaliar e mitigar riscos. Enquanto isso, países identificados como de alto risco estão sujeitos a sanções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) ou do Conselho da UE sobre importações ou exportações de commodities e produtos relevantes, segundo a Comissão.
Entidades como o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), representando o país nas discussões sobre o EUDR na Comissão Europeia, defendiam que o sistema de risco fosse por região do país, o que acabou não ocorrendo.
Por meio do Ministério de Relações Exteriores (MRE), o governo brasileiro reiterou seu posicionamento crítico a respeito da lei antidesmatamento europeia e afirma ter recebido “com preocupação” a classificação de risco de países.
Segundo nota do Itamaraty, a legislação “constitui medida unilateral e discriminatória e desconsidera os esforços nacionais e multilaterais para a preservação de áreas florestais e enfrentamento da mudança do clima”.
“A medida acarreta ônus significativo e desproporcional aos países que praticam a agricultura tropical de maneira responsável e sustentável como Brasil, com impactos ainda maiores para produtores de menor escala”, diz o texto.
De acordo com o MRE, no processo de classificação prevaleceu “a discricionaridade de critérios tanto para avaliação quantitativa quanto qualitativa dos países, com base em recorte temporal retroativo”.
“Em especial, é motivo de estranheza que a grande maioria dos países que ainda detêm e preservam as maiores áreas de floresta tropical nativa do planeta tenham sido classificados em categoria de risco superior à de países que praticam agricultura de clima temperado”, afirma o texto.
A Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil) considera o EUDR “uma afronta à soberania nacional”, que “coloca a conversão de uso do solo permitido em lei na mesma vala comum do desmatamento ilegal, que já é punido pela legislação ambiental brasileira”.
“Em relação ao desmatamento ambiental, as medidas de controle e melhoria da gestão já vêm sendo implementadas pelo governo brasileiro, que recentemente reduziu o prazo para zerar o desmatamento ilegal de 2030 para 2028”, diz a entidade.
“Se isso não é suficiente, podemos concluir que as intenções da União Europeia não dizem respeito à preservação ambiental, mas, sim, de uma tentativa de exercer barreiras comerciais contra produtores de alimentos do Brasil para proteger agricultores daqueles países”, aponta a Aprosoja Brasil.
Brasil responde a protecionismo com Lei da Reciprocidade
Em 2023, em resposta à lei antidesmatamento europeia, o senador Zequinha Marinho (PL-PA) propôs o PL 2.088, conhecido como Lei da Reciprocidade. A proposta original previa a exigência de padrões ambientais em produtos importados equivalentes aos exigidos dos produtores nacionais no processo de exportação.
“A dificuldade de competir com o nível da produção brasileira tem pressionado governos e governantes dos setores agropecuários estrangeiros a tentar manchar a imagem e a eficiência do produtor rural brasileiro, por meio de narrativas demagógicas. O objetivo é impor mais custos ao sistema produtivo, baseados em medidas de proteção ambiental, para indiretamente garantir competitividade aos produtos agrícolas estrangeiros”, diz o parlamentar na justificativa do projeto.
Conforme o senador, na Europa foram liberados cultivos agrícolas mesmo em áreas de preservação ambiental de imóveis rurais, que antes eram limitadas a 5% da propriedade rural, isentando os pequenos produtores da obrigação, enquanto no Brasil esse percentual varia entre 20% e 80%, de acordo com o Código Florestal.
Além disso, foi flexibilizada a distância obrigatória entre lavouras e cursos d’água para 2 metros de largura nas margens do rio, enquanto no Brasil essa faixa é de 30 a 500 metros, dependendo da largura do rio.
O PL foi aprovado em abril deste ano, com apoio do governo e da oposição, por meio de um substitutivo da senadora Tereza Cristina (PP-MS), que passou a contemplar a reciprocidade também para tarifas alfandegárias, em meio à expectativa da imposição de barreiras comerciais pelos Estados Unidos.
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No ano passado, dois exemplos do protecionismo europeu “disfarçado” de preocupação ambiental criaram tensão entre setores do agronegócio brasileiro e multinacionais europeias.
Em outubro, o diretor financeiro global da gigante francesa de laticínios Danone, Jurgen Esser, afirmou à agência Reuters que, adiantando-se ao EUDR, a empresa não comprava mais soja do Brasil, em razão de o produto não ser sustentável.
“Temos um rastreamento muito efetivo e podemos assegurar que só utilizamos ingredientes sustentáveis em nossos processos. Não compramos [mais soja do Brasil]”, disse o executivo.
No mês seguinte, o presidente do Carrefour, Alexandre Bompard, anunciou que o grupo supermercadista estaria se comprometendo a não vender mais carnes de países do Mercosul na França em protesto contra o acordo comercial entre o bloco sul-americano e a União Europeia, que ainda estava em negociação. Nas palavras dele, se o acordo fosse firmado, a França seria “inundada” com carne “que não atende às exigências e normas” do país.
Em ambos os casos houve reação do setor produtivo e do governo brasileiros, além de ameaças de boicote por parte da população, o que fez com que as duas empresas recuassem em seus posicionamentos.
A Danone afirmou que as informações que circularam eram “incorretas” e que continuava a comprar soja brasileira, “em conformidade com as regulamentações locais e internacionais”.
Já o presidente do Carrefour encaminhou uma carta diretamente ao Ministério da Agricultura e Pecuária esclarecendo que sua declaração teria como objetivo apoiar os agricultores franceses e “reconhecendo a alta qualidade, o respeito às normas e o sabor da carne brasileira”.
Acordo entre Mercosul e UE mantém protecionismo ambiental
Para Daniel Vargas, da FGV, mesmo a conclusão das negociações do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia não encerra a polêmica. “Se olharmos os documentos divulgados sobre o conteúdo do acordo estabelecido entre os dois blocos regionais, o capítulo ambiental é extremamente exigente e europeizado”, diz.
Após o fim das negociações do tratado, no ano passado, o documento agora precisa ser ratificado, este ano, pelo Legislativo de cada país-membro do Mercosul, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia.
“A Europa está profundamente espremida entre a economia chinesa e a americana, que ainda é muito mais competitiva do que a europeia. Em um ambiente como esse, eles precisam desesperadamente encontrar campos em que sua produção possa ter alguma vantagem, alguma capacidade de penetração”, explica Vargas.
“No ambiente em que estão, com uma guerra ao lado, déficit público cada vez mais acentuado, estabelecendo compromissos de ampliar gastos militares em ambiente político tenso, com inflação batendo à porta dos supermercados, eles precisam desesperadamente aumentar sua capacidade de produção.”
Para o economista, o acirramento do protecionismo no comércio exterior, que inclui a guerra comercial travada entre grandes potências como Estados Unidos e China, gera uma rearticulação do diálogo econômico global.
“Estamos acostumados a olhar para a economia internacional a partir desse fenômeno da globalização, que foi muito importante para o desenvolvimento da produção de alimentos na América Latina, e no Brasil em particular, segundo uma lógica de mercado aberto, na qual quem produz mais barato e com melhor qualidade ganha a corrida competitiva”, ressalta.
Para ele, no entanto, esse novo modelo de organização econômica, baseado em acordos bilaterais, pode ser uma oportunidade para o Brasil, desde que o país saiba conduzir bem seus tratados comerciais a partir das boas relações diplomáticas que historicamente o caracterizam.