Esquerda lutou contra fiscalização dos descontos do INSS

O governo Lula tem tentado responsabilizar a gestão de Jair Bolsonaro (PL) pelo escândalo bilionário envolvendo descontos indevidos em aposentadorias e pensões do INSS. Mas documentos e registros da tramitação legislativa sobre o tema contradizem a narrativa.
Medidas propostas pelo Executivo em 2019 para reforçar a fiscalização sobre repasses a entidades sindicais e associativas foram duramente combatidas pela oposição, liderada por partidos de esquerda, hoje base do governo.
Em seu primeiro mês de gestão, Bolsonaro editou a medida provisória (MP) 871/2019 que, entre outros controles, determinava que as permissões para os descontos automáticos na conta dos aposentados teriam de ser revalidadas todo ano a partir de 2020, pelos próprios beneficiários.
Na época, já pipocavam denúncias de fraudes por parte de associações representativas, mencionadas 16 vezes na justificativa da MP, segundo levantamento do jornal O Globo.
A reação foi imediata. Dezenas de emendas foram apresentadas para ampliar os prazos para o cadastramento das entidades e manter os descontos sem fiscalização. Algumas acabavam com a necessidade de revalidação ou ampliavam o prazo para seu início até 2028; outras trocavam a revalidação anual por uma verificação a cada cinco anos.
O argumento era a dificuldade em obter as comprovações das autorizações por parte dos sindicatos, que alegavam ter mais de 7,2 milhões de filiados. Em pelo menos 12 emendas de partidos de esquerda — oito do PT, uma do PCdoB, uma do MDB, uma do PSB e outra do PSDB — a justificativa foi a mesma: “Revalidar cada autorização anualmente torna o desconto da mensalidade social praticamente inviável”.
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Foram três semanas de acirrados debates legislativos que incluíram obstrução de votações pela bancada oposicionista, que acusava a medida de retirar direitos dos trabalhadores, limitando a concessão de benefícios e de aposentadorias.
Em um dos debates, o deputado Zeca Dirceu (PT-PR) desqualificou a justificativa de combate à corrupção: “É importante esclarecer à população que essa medida provisória não vem para combater fraudes. O governo tem todos os mecanismos necessários para combater fraudes, os grandes sonegadores, enfim, para lutar contra aqueles que praticam o malfeito”, disse o parlamentar.
“Por isso, vamos manter a obstrução naquilo que for necessário para que essa medida provisória não prospere, porque ela é ruim para o Brasil.”
Em outra sessão, o senador Jaques Wagner (PT-BA) usou o mesmo argumento: “Combater a corrupção ou chamar a aposentadoria indevida é bem-vindo. Mas não vamos jogar a criança junto com a água suja para fora. Em todas as instituições, seja em sindicato de trabalhador, seja em sindicato empresarial, você vai achar gente boa e gente ruim. Agora, simplesmente aniquilar a participação dos sindicatos, eu acho extremamente nocivo.”
Algumas das emendas acabaram aprovadas e incorporadas pelo relator da MP, deputado Paulo Eduardo Martins (PL-PR). A Câmara dos Deputados aprovou o texto em 29 de maio de 2019, e o Senado Federal o aprovou em 3 de junho de 2019, no limite do prazo de validade da MP.
Petistas comemoraram flexibilização e tentaram ampliar apoio rural
A aprovação das emendas que flexibilizavam o desconto foi comemorada pelo deputado Carlos Veras (PT-SP): “Fruto de vários dias de muito esforço, de muito trabalho, principalmente da Contag e de suas federações, do Partido dos Trabalhadores, dos partidos do campo, da esquerda, a fim de construir uma emenda que pudesse, nesta MP 871/19, salvar os trabalhadores e as trabalhadoras.” E finalizou: “No que for possível salvar os trabalhadores, este partido lutará incansavelmente.”
Carlos Veras é irmão de Aristides Veras, ex-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), entidade que, segundo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), é a que mais recebe dinheiro dos descontos. Foram R$ 426 milhões só em 2023.
Junto com os recursos repassados à Confederação Nacional de Agricultores Familiares Rurais (Conafer), as duas entidades rurais receberam 27% do total arrecadado pelas 19 principais associações investigadas pela Operação Sem Desconto.
O deputado petista também trabalhou pela retirada do dispositivo da MP que acabava com a possibilidade de os sindicatos atestarem a atividade rural. O atestado é uma ferramenta indispensável para o trabalhador do campo conseguir benefícios previdenciários. Geralmente, os sindicatos oferecem a comprovação aliada à filiação à entidade.
O senador Paulo Paim (PT-RS) chegou a fazer apelo em plenário para prorrogar a extensão do prazo para os sindicatos emitirem declarações de comprovação de atividade rural até 2028. “Vamos pensar principalmente o Nordeste. A dificuldade vai ser muito maior. Eu tenho muita esperança de que esse plenário vote aqui o destaque que vai garantir pelo menos que até 2028 haja um espaço para cadastrar.”
Apesar da pressão, a MP convertida na Lei nº 13.846/2019 eliminou essa prerrogativa, substituída por autodeclarações validadas pelo INSS via cruzamento de dados oficiais.
Estratégia do governo e do PT é insistir em narrativa de “golpe”
Presssionado pela repercussão do caso, a estratégia do governo é insistir que o esquema de repasses indevidos começou em 2019, na gestão Bolsonaro, e atribuir à iniciativa do atual governo, via CGU e Polícia Federal, o enfrentamento do escândalo.
Durante visita à Rússia no fim de semana, Lula atribuiu ao governo Bolsonaro a criação de uma “quadrilha” responsável pelo escândalo e prometeu uma investigação “sem pressa e sem pirotecnia” para recuperar os valores desviados.
Em nota à imprensa, a bancada do PT na Câmara reforçou a narrativa: “A verdade é uma só: as alterações legislativas ocorridas durante o governo Bolsonaro no tema dos descontos associativos no âmbito do INSS são de responsabilidade do ex-presidente e de seus aliados no Congresso.”
A ideia é também ganhar a guerra nas redes sociais. Após o vídeo do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) acusando o PT da fraude bilionária — que viralizou e acendeu as luzes de alerta do governo — o partido publicou o seguinte em seu perfil no X:
“Se o golpe tivesse dado certo a roubalheira no INSS continuaria e você mais ficaria sabendo. Compartilhe a verdade! Lula salvou o INSS.” Usuários do X corrigiram a publicação por meio das notas da comunidade. Após a checagem, a postagem exibiu o seguinte comentário: “O roubo aumentou 253% desde que Lula assumiu a Presidência”.
Oposição foca na explosão de repasses do INSS no governo Lula
A explosão das irregularidades na gestão Lula tem sido o principal argumento da oposição. Os descontos das mensalidades saltaram de R$ 706 milhões em 2022 para R$ 1,2 bilhão em 2023 e R$ 2,8 bilhões em 2024, segundo a CGU.
Os deputados da base bolsonarista também destacam que a CGU identificou que os descontos indevidos em benefícios do INSS começaram pelo menos desde 2016, somando R$ 8 bilhões até 2024. Eles criticam ainda a exclusão de entidades como o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos (Sindnapi) — ligado a José Ferreira da Silva (Frei Chico), irmão de Lula — do bloqueio de bens das entidades, determinado pela Justiça.
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) chegou a questionar a resistência do PT e de outros partidos de esquerda em apoiar o pedido de abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar os crimes, que acabou sendo protocolado na segunda-feira (12), com apoio de 36 senadores e 223 deputados.
A instalação ainda depende de uma sessão conjunta da Câmara e do Senado. O presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (União-AP), que acompanhou o presidente Lula em visita à China, não contribuiu para o avanço do processo.